Como o mercado milionário das universidades desvaloriza a medicina veterinária no Brasil?

A educação quando é tratada como commodity, traz resultados negativos para muitos setores. Profissionais desqualificados e inseguros, insuficiência de docentes qualificados, sucateamento das instituições públicas e pesquisas, desvalorização da profissão e, na medicina veterinária, o curioso paradoxo da grande quantidade graduados e a falta de médicos-veterinários para diferentes áreas de atuação médico-veterinária no Brasil.

setembro 9, 2024
12:15
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Sumário

Por Mariana Perez, da redação Vet&Share, reportagem capa edição 117

Lançada em 1969, pelo sambista brasileiro Martinho da Vila, a música “O Pequeno Burguês”, faz críticas ao sistema de ensino privado no Brasil daquela época. Apesar dos 55 anos, a música continua muito atual.

Essa referência e a introdução dessa reportagem foram inspiradas no artigo “A quem interessa o sucateamento das universidades federais?”, escrito com muita maestria pela jornalista, Ana Cristina Menegotto Spannenberg, professora de comunicação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e publicado na plataforma da Agência Conexões. De acordo com Ana Cristina, há duas possíveis respostas para essa questão.

A primeira delas, e a principal, é entender que o ensino superior no Brasil se transformou em um negócio muito lucrativo e, consequentemente, atrai o interesse de grandes grupos e políticos.

A segunda resposta tem relação com o estigma criado em torno das universidades públicas e a relação dos docentes com partidos políticos. O que deu origem a uma guerra ideológica. O link direto para o artigo completo você encontra aqui.

E partindo dessa reflexão inicial, podemos entender que os interesses financeiros e políticos transformam a educação em commodity, impactando diretamente na qualidade do ensino em diversas áreas.

Infelizmente, na medicina veterinária não é diferente. O mercado de ensino voltado para a veterinária cresceu significativamente de forma descoordenada nos últimos dez anos, influenciado pelo aumento do número de animais de companhia e na mudança do papel desses animais nos lares brasileiros.

E para falar sobre esse panorama, conversamos com a médica-veterinária, presidente da Comissão Nacional de Educação em Medicina Veterinária (CNEMV/CFMV), doutora Maria Clorinda Soares Fioravanti, professora titular da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Maria Clorinda Soares Fioravanti, médica-veterinária, doutora, professora titular da Universidade Federal de Goiás (UFG) e presidente da Comissão Nacional de Educação em Medicina Veterinária (CNEMV/CFMV).

Ela destaca que acessou a plataforma do Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior Cadastro e-MEC (https://emec.mec.gov.br/emec/nova), um dia antes da entrevista, em 22/8/2024, e verificou que constavam registrados 556 cursos de graduação de medicina veterinária no Brasil.

“Entretanto, 30 extintos e 8 em processo de extinção. Então, esse número cai para 518. Esses cursos extintos, sem exceção, são de instituições privadas. Esses números já são bons indicadores do panorama atual. Desses cursos que foram extintos, 18 sequer chegaram a iniciar e 12 iniciaram no papel, sendo dois deles EAD (Ensino à distância), que no mesmo ano já extinguiram. Na minha percepção, aqui é muito claro, é uma questão de mercado. Então eles vão lá cadastram, reservam aquele mercado e depois percebem que, do ponto de vista econômico, não seria viável”.

LEIA TAMBÉM: É possível um médico-veterinário brasileiro trabalhar nos Estados Unidos?

No Brasil, existem duas categorias de instituições privadas, as com fins lucrativos e as sem fins lucrativos. Dra. Clorinda explica as diferenças entre elas.

“As instituições sem fins lucrativos podem concorrer a editais públicos de fomento. Todas as instituições confessionais, independente da religião são exemplos de universidades confessionais, sem fim lucrativos e precisam, claro, também oferecer bolsa e ter ações sociais. As com fins lucrativos, são aquelas que têm no ensino, um negócio cujo único objetivo é gerar lucro”.

Ao compararmos a quantidade de cursos que existem em outros países, é possível entender o cenário absurdo em que chegamos.

“No Canadá, existem cinco cursos de medicina veterinária. Nos Estados Unidos, são 33. No México, 18. Os Estados Unidos, depois de muitos anos, estão se preparando para criar mais alguns cursos, mas quando eu falo em criar mais alguns cursos, estamos falando de poucos, menos de 10. Então eu acho que isso já te dá uma dimensão, de como o Brasil é em relação ao resto do mundo”.

Para o médico-veterinário, diretor da Associação Brasileira dos Hospitais Veterinários (ABHV) e sócio-fundador do Hospital Veterinário Santa Mônica de Curitiba (PR), Roberto Lange, o grande problema dessa quantidade, é o reflexo direto na qualidade do ensino.

Roberto Lange, médico-veterinário, diretor da Associação Brasileira dos Hospitais Veterinários (ABHV) e sócio-fundador do Hospital Veterinário Santa Mônica de Curitiba (PR).

“Não existe corpo docente suficiente para fazer a formação de um egresso com a qualidade esperada pela sociedade. Estão saindo veterinários muito mal-formados, seja em qual for a área que ele está atuando. Esses docentes, da maioria das faculdades, não têm nem a vivência prática e nem a vivência acadêmica”.

De acordo com a médica-veterinária, sócia-fundadora do grupo Animaniacs em São Paulo (SP) e vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos-Veterinários (ANMV), Tatiana Machado Calamita, o resultado de uma grade curricular de baixa qualidade e carga horária insuficiente, é a desvalorização do médico-veterinário. A ANMV realizou esse ano a segunda edição do Fórum Nacional de Formação de Medicina Veterinária e conversou com diversos estudantes.

Tatiana Machado Calamita, médica-veterinária, sócia-fundadora do grupo Animaniacs em São Paulo (SP) e vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos-Veterinários (ANMV).

“Durante o fórum escutamos dos próprios estudantes que as provas não têm mais lista de presença, então se o aluno vai ou não vai, todos passam. Não existe mais repetir. Antigamente ficávamos de DP (dependência de disciplina), hoje todo mundo passa. E outra, você faz uma redação, consegue uma bolsa de 80%, então não há um pré-requisito para entrar na universidade. E a consequência é a desvalorização e a dificuldade das empresas. Eu como empresária e empregadora de médicos-veterinários tenho muita dificuldade de contratar veterinário recém-formado, porque ele vem sem base alguma”.

Roberto Lange observa outro ponto importante que é o perfil da maioria dos estudantes da geração atual que não é incentivada a construir uma carreira, e quer pular etapas.

“Além da formação técnica insuficiente, não temos cidadãos adequados para encarar a vida na sociedade. São cidadãos que esperam muito pelo imediatismo e não pela construção de carreira que demora tempo, a curva de tempo para ser um bom profissional pode variar conforme as pessoas”.

O paradoxo do mercado veterinário

A maioria dos estudantes que ingressam em um curso de medicina veterinária no Brasil tem interesse no mercado de animais de companhia, criando um paradoxo, pois apesar da grande quantidade de veterinários formados, há falta de profissionais para outras diversas áreas de atuação do médico-veterinário. Para Roberto Lange isso também é reflexo do ensino deficiente.

“Hoje 75% da mão de obra médico veterinária está focada na área de animais de companhia. E não há profissionais para as outras 80 áreas do saber como produção animal, saúde única, em todos os outros ramos estão faltando médicos-veterinários qualificados. A grade é generalista e assim deve ser. Mas ela deve contemplar todas as áreas de atuação. Então nós temos aqui no Brasil uma deficiência de fazer o ensino do egresso que está na faculdade nas áreas ligadas à saúde pública, inspeção de alimentos, pesquisa. Há um déficit muito grande dessa natureza”.

Por conta desse cenário, na avaliação de Tatiana, é importante que o mercado se una para encontrar soluções e destaca que a ANMV tem como objetivo contribuir com a formação dos médicos-veterinários, não só no que diz respeito ao mercado de animais de companhia, mas em todas as outras áreas de atuação da profissão.

De acordo com a Dra. Clorinda, atualmente há uma distorção do papel do médico-veterinário na sociedade.

“O nosso papel do ponto de vista social é muito maior que isso. Somos fundamentais para garantir qualidade e produção de alimento. É muito importante esse papel. Você lembra quando colocaram um veterinário coordenando vacina na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o bafafá que foi no país como se o veterinário não tivesse competência para isso. Mas essa pressão do mercado pet e esse modelo de formação está colocando em risco a profissão do médico-veterinário na sua essência”.

Somatória de erros

Essa situação caótica é resultado de uma somatória de fatores como: a ausência de critérios rígidos na avaliação de um curso de graduação para ser registrado, o afrouxamento nas normas tem permitido a abertura de cursos de medicina veterinária a distância (EAD), salas lotadas e, acima de tudo, corpo docente insuficiente que não atende o perfil mínimo de médicos-veterinários para ministrar as disciplinas de competência exclusiva da profissão.

Segundo Dra. Clorinda, os cursos em formato EAD não recebem nenhuma aprovação do CFMV. Para se ter uma ideia, dos 518 cursos de graduação em medicina veterinária registrados até o fechamento dessa reportagem, 17 são em EAD, sendo oito apenas registrados e não iniciados.

“Desses não iniciados, nós estamos falando de 23 mil vagas anuais. Dos iniciados, que são nove, nós temos 5.520 mil vagas e a primeira EAD a entrar em atividade foi em 2016 e três iniciaram as atividades em 2021. Esse já é um problema, porque o CFMV entende que não é possível formar um médico-veterinário em EAD. Em relação a esses 17 cursos, eles não têm a chancela do CFMV na questão de qualidade. Existe, inclusive, uma legislação que diz que cursos da área de saúde não podem ser ofertados em EAD, mas como no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) a medicina veterinária entra como agrárias, eles estão utilizando esse, vamos dizer, atravessado da lei para dizer que é possível oferecer veterinária em EAD. Não é possível ter qualidade e formar um bom médico-veterinário em EAD”.

Das 501 instituições presenciais registradas, 57 delas não tinham iniciado as atividades até o fechamento dessa reportagem. “Então, nós temos hoje aprovados e de maneira presencial no Brasil 444 cursos, o que continua sendo um número completamente absurdo. Desses 444, a primeira crítica é em relação ao número de vagas de um curso. Nós temos 225 instituições privadas com fins lucrativos que estão ofertando 36.319 mil vagas. Em média, 161 estudantes por turma. Nós temos instituições privadas sem fins lucrativos com 142 cursos, que ofertam 25.871 mil vagas”.

Ao analisar a quantidade de vagas nas instituições públicas, os números são bem diferentes. No Brasil há cinco instituições municipais ofertando 620 vagas, 16 instituições estaduais com 877 vagas, e 55 instituições federais com 3.900 mil vagas. Ou seja, as instituições privadas ofertam mais de 62 mil vagas, enquanto as públicas ofertam pouco mais de 5 mil vagas. O tamanho médio das turmas das instituições com fins lucrativos é de 161 alunos; as turmas das instituições sem fins lucrativos contemplam em média 182 alunos; as turmas das instituições municipais com média de 124, estaduais 55 e as federais com média de 71 alunos.

“É inquestionável que esses estudantes que estão cursando em universidades públicas, terão, proporcionalmente, número maior de professor acompanhando a sua formação. Existem bons cursos tanto em instituições privadas com fins lucrativos como sem fins lucrativos, mas eles são a minoria absoluta dos cursos. De uma maneira genérica, eu posso te dizer que a qualidade da formação nas públicas é muito melhor, porque as turmas são significativamente menores em relação às privadas”.

Avaliação dos cursos

A maioria desses cursos de instituições privadas começaram a surgir recentemente. Para se ter uma ideia, até o ano 2000, o Brasil tinha registrado 24 cursos. Foi em 2010 que esse número começou a aumentar exponencialmente, ano em que foram criados mais 27 cursos.

E com essa rápida e repentina expansão, Dra. Clorinda questiona a real qualidade dos cursos dessas universidades. Das atuais 225 instituições com fins lucrativos, só 153 já passaram por algum tipo de avaliação.

“72 ainda não foram avaliadas, porque foram criadas nos últimos cinco anos e o último Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), que foi em 2019, não as alcançou. Então elas estão funcionando só com uma avaliação inicial”.

Para avaliar um curso são utilizados indicadores como o CC (Conceito de Curso), avaliação inicial in loco realizada pelo INEP, com nota de 1 a 5, sendo acima de 3, qualidade satisfatória. Além desse, há o indicador do ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), o indicador CPC (Conceito Preliminar de Curso), realizado no ano seguinte ao da realização do Enade e o IDD (Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado), que é a diferença entre o valor da avaliação dos ingressantes e dos formandos.

Dra. Clorinda destaca que dessas 225 instituições com fins lucrativos, a média da nota CC dos cursos é 3,7, mas quando ocorre a avaliação dos estudantes, a média cai.

“Ou seja, o curso começa com uma nota maior, e quando vamos ver o desempenho dele lá na frente, a nota é sempre menor que a nota inicial. Isso, do meu ponto de vista, significa que estamos sendo muito generosos nessa avaliação inicial, dando uma nota para um curso que não é real, só em cima de papel”.

Para Dra. Clorinda, diante de todo esse cenário, o próximo resultado do ENADE será um verdadeiro desastre. O mesmo acontece com as instituições sem fins lucrativos. As médias iniciais são altas e caem conforme os alunos são avaliados.

O CFMV fez um acordo com o MEC para que os novos projetos de cursos fossem avaliados pela CNEMV do CFMV. Recentemente, Dra Clorinda conta que foram avaliados 40 projetos. Confira na reportagem versão Youtube e Spotify Vet&Share, a análise completa da Dra. Clorinda sobre esses 40 projetos de cursos avaliados pela CNEMV do CFMV.

Confira também no formato áudio, nas plataformas do Youtube e Spotify.


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outubro 17, 2024
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