
A médica-veterinária Caroline Campagnone, endocanabinologista e ativista da área, fala sobre como a medicina veterinária está abrindo as portas para os benefícios comprovados da cannabis medicinal
Imagem: Canva
Reportagem de Mariana Perez, jornalista
A história da médica-veterinária Caroline Campagnone com a cannabis medicinal começou no ambiente familiar. Formada em medicina veterinária em 2016, na cidade de Santos (SP), Caroline conta que era daquelas pessoas que, por não conhecer a endocanabinologia, tinha preconceito com relação a planta da cannabis e não a via como um medicamento.
Contudo, ao buscar alternativas terapêuticas para seu marido, que é portador de uma doença neurodegenerativa, encontrou a cannabis medicinal e aceitou a ideia, mesmo que com alguma resistência. “Eu acreditava que nunca a cannabis seria utilizada como remédio. A minha quebra de barreira mesmo foi ouvir um padre falando sobre sistema endocanabinoide. O padre Ticão, que liderou por anos o movimento feito pela Unifesp em São Paulo, e que promove os cursos gratuitos voltados para medicina humana. Durante as palestras, o padre falava sobre o uso da cannabis e os benefícios. De alguma forma, ouvir ele falar, quebrou o preconceito dentro de mim, porque até o tratamento do meu marido, eu estava com dificuldade para aceitar. Entendi como as informações chegam distorcidas para nós”.
Caroline Campagnone, médica-veterinária, pós-graduada em clínica e cirurgia de pequenos animais e em Cannabis Medicinal. Mestranda na UFRPE em Biociência Animal. Extensões em Medicina Canabinoide nacionais e internacionais. Diretora Geral da Associação Medicinal Canábica (AME-C), voltado ao associativismo veterinário. Diretora na Plantando Conhecimento, escola de Endocanabinologia e Coordenadora de Pós-Graduação em Endocanabinologia Veterinária nesta instituição. Desenvolvedora do aplicativo Cannaderno, para facilitar o monitoramento de tratamento de pacientes. Membro do GT do CFMV de 2023 e 2024 para suporte técnico na regulação de substâncias canabinoides na medicina veterinária. Medalha de Honra "Major Elza Cansanção" pelo trabalho com cannabis na veterinária
Com a utilização da cannabis, Caroline presenciou a melhora de seu marido, principalmente com relação a dor. A partir daí, Caroline começou a estudar a utilização da cannabis medicinal em animais e fazer cursos diversos na área, nacionais e internacionais como no Centre Of Excellence, no Reino Unido. “Eu comecei a ver toda aquela gama de aplicabilidade para a medicina humana e fui adaptando para a medicina veterinária. Entendi que o corpo do animal, assim como o corpo do ser humano, tem substâncias canabinoides endógenas, por isso que a cannabis acaba sendo uma carta coringa no tratamento de diversas patologias. Todas essas aplicações são possíveis por conta do sistema de canabinoides endógenos, que tantos humanos quanto animais produzem. Há várias plantas que interagem com esse sistema, mas a cannabis é a que mais regula esse sistema por ter essa afinidade com esses compostos no organismo”, explica.
Ao começar estudar, Caroline se surpreendeu com a informação de que o próprio corpo produz substâncias canabinoides. “Esse sistema foi descoberto na década de 90. Os receptores canabinoides estão espalhados por todo o corpo e há os neurotransmissores endocanabinoides. Em cada fenda dos nossos neurônios existem os endocanabinoides. Essas células desempenham diversos papeis diferentes, dependendo de onde elas estão, e trabalham na homeostase”.
Segundo Caroline, quando o animal está em homeostase, ele está em equilíbrio. Porém, quando o animal passa por algum estresse, ou quando não tem uma dieta adequada conforme a sua espécie, ou ainda quando é sedentário, vai afetar esse sistema que possui vários componentes, entre eles, dois componentes principais que são: o anandamida e 2AG (2-araquidonoilglicerol).
Caroline explica que o componente 2AG (2-araquidonoilglicerol) é responsável pelo equilíbrio da imunidade e a anandamida é a substância da felicidade do organismo que, ao passar por algum estresse, diminui. “Além dela ser a substância da felicidade, ela participa do processo analgésico, inflamatório, da regulação arterial do organismo, regulação do sono e humor. Quando há uma deficiência no sistema endocanabinoide, o corpo começa a responder com diferentes patologias. O sistema endocanabinoide mostra como o sentimento afeta fisicamente o organismo. Existem estudos que analisaram vários quadros oncológicos e quanto mais grave era o quadro, maior era a deficiência de anandamida”, conta e ressalta: “A endocanabinologia é muito mais do que cannabis. Se tivéssemos visto isso na faculdade, poderíamos amenizar muito mais os sofrimentos dos nossos pacientes. Além disso, ao estudar, aprendi como cuidar de mim também”.
Atualmente Caroline faz parte de cinco pesquisas cientificas em universidades federais que tem objetivos diversos como desenvolver protocolos, estabelecer as dosagens adequadas e comprovar aplicações. Contudo, Caroline destaca que há muitas pesquisas já desenvolvidas sobre o sistema endocanabinoide e os benefícios da cannabis medicinal.
Contudo, Caroline alerta que o tratamento com a cannabis não substitui o tratamento convencional, é uma terapêutica adjuvante. “Há pessoas que colocam a cannabis como a deusa da cura e querem parar com os tratamentos convencionais. A cannabis não é milagrosa, ela vai contribuir para regular o sistema que é muito importante para a saúde. Houve caso de precisar suspender o tratamento com a cannabis, porque o tutor queria parar todo o tratamento convencional e deixar somente a cannabis, o que não pode ser feito”.
O tempo de tratamento com a cannabis vai depender do quadro do paciente. Caroline conta o caso de um de seus pacientes, o Otto, um bulldog francês que chegou para ela tomando 25 mg de fluoxetina por conta de ansiedade e estresse de separação. “A cannabis foi associada a fluoxetina. Em determinado momento, fizemos o desmame da fluoxetina, e mantivemos somente a cannabis. Recentemente conseguimos desmamar também a cannabis para que ele ficasse apenas com nutracêuticos mais simples. O tratamento com a cannabis durou dois anos e o tutor ficou bem satisfeito”.
Otto, bulldog francês, paciente de Caroline
O tutor do paciente Otto, Gabriel Campagnaro, conta que o tratamento com a cannabis foi como a luz no fim do túnel. “Antes de iniciar o tratamento com a cannabis, o Otto tinha feito vários outros tratamentos, entre eles alguns que proporcionaram efeitos colaterais. Os principais benefícios foram a redução dos comportamentos excessivos relacionados ao estresse como latidos constantes, destruição de objetos e hiperatividade. Ele ficou mais calmo, principalmente em momentos que são mais estressantes como viagens, final de ano e visitas ao veterinário. Houve melhora na qualidade de vida, não só do Otto, como de toda a família”, conta.
Em novembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerou juridicamente possível a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo e comercialização do cânhamo industrial – variação da Cannabis sativa com teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3% – por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos. Também em 2024, foi alterada a Portaria SVS/MS 344/1998 que trata dos produtos controlados no Brasil (Critérios sobre prescrição e dispensação). Com isso, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) pode regularizar produtos veterinários à base de Cannabis Sativa para comercialização no Brasil e que podem ser prescritos somente por médicos-veterinários.
Caroline conta que para que seu marido pudesse fazer o tratamento em 2020, foi preciso recorrer à justiça. “O tratamento importado prescrito era muito caro, então, nós conseguimos um habeas corpus, que é um remédio constitucional que que possibilita o paciente cultivar em casa o próprio remédio e fazer todo o processo de extração para uso próprio”, recorda e destaca: “Hoje, o caminho regulatório está sendo desenhado, tanto para uso humano quanto veterinário. Mais do que nunca, todos os olhos estão voltados para esse setor e, aos poucos, as pessoas vão se livrando das raízes preconceituosas, dando lugar ao conhecimento e ao grande potencial que essa planta oferece. Com o movimento do mercado, o produto se tornará cada vez mais acessível”, analisa Caroline.
O primeiro passo para os médicos-veterinários interessados em prescrever a cannabis é a capacitação. De acordo com Caroline, é importante entender que a endocanabinologia foi negligenciada na formação do médico-veterinário.
Ela explica que existem vários tipos de óleos de cannabis e, por isso é importante o veterinário se capacitar para entender e poder prescrever corretamente. “O médico-veterinário para prescrever a cannabis pode recorrer aos produtos que estão na farmácia humana com a receita azul de uso controlado para produtos que tenham teor até 0,2% de THC, predominantes em canabidiol, que é apenas um dos compostos terapêuticos dessa planta que possui milhares de compostos. Ainda na farmácia humana, os produtos que apresentam teor maior do que 0,2% de THC é necessário ter a receita amarela”.
A importação de produtos de cannabis não é uma possibilidade para o uso na veterinária, a legislação atual não permite.
Além da farmácia humana, existe outra possibilidade, que são as associações, que são as Organizações Não Governamentais (ONGs) que entram com processo judicial e com inúmeras documentações necessárias para obter liminar judicial.
Os valores dependem muito do produto. Na farmácia, os valores variam de R$ 400,00 a R$ 3 mil em média, depende muito da concentração, do tipo, do laboratório. Pelas ONGs, os valores são mais acessíveis e podem variar, é possível encontrar a partir de R$ 150,00, dependendo da concentração, sem contar com a taxa associativa da instituição.
Além dos óleos, há também as apresentações em pomada e produtos de uso intranasal, que normalmente são utilizados para animais epiléticos, por conta da sua rápida absorção.
E para promover o acesso da planta aos pacientes veterinários, Caroline precisou fundar uma associação. “Foi necessário buscar judicialmente uma forma de promover o acesso dos tutores dos animais a cannabis. As associações existentes até então, eram voltadas apenas para uso humano e toda a sua regulação voltada para isso”.
A Associação Medicinal Canábica (AME-C), fundada por Caroline, é uma instituição sem fins lucrativos e que tem como objetivo buscar as esferas judiciais para acolher e auxiliar famílias que necessitam utilizar a cannabis medicinal para tratamento veterinário de seus animais. Além da AME-C, atualmente existem outras ONGs que também são voltadas para animais de estimação.
Quando Caroline começou a trabalhar com cannabis, eram poucos veterinários que trabalhavam e, ainda, de forma limitada com a planta. Nos anos de 2023 e 2024 participou do GT (Grupo de Trabalho) do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) para a regulação das substâncias canabinoides na veterinária, esforço de vários veterinários que resultou na RDC que autoriza o uso. E por todo esse trabalho e dedicação com a área, Caroline recebeu uma medalha de honra “Major Elza Cansanção” na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo pela Associação Brasileira das Forças Internacionais da Paz da ONU (ABFIP), em 2023.
Atualmente, Caroline coordena uma pós-graduação em Endocanabinologia Veterinária, promove cursos e mentorias para quem quer se capacitar, e faz consultas presenciais ou via telemedicina.
A médica-veterinária Caroline Campagnone, endocanabinologista e ativista da área, fala sobre como a medicina veterinária está abrindo as portas para os benefícios comprovados da cannabis medicinal