Quais as principais inconsistências nas bulas de medicamentos de uso veterinário exclusivo?

Esse foi o tema da tese de mestrado da médica-veterinária Vanessa Cola Thomazini, orientada pela farmacêutica e bioquímica, mestre e doutora, Janaína Cecília Oliveira Villanova, no Programa de Pós-Graduação de Ciências Veterinárias, na Universidade Federal do Espírito Santo. O trabalho identificou inúmeras inconsistências nas bulas dos medicamentos de uso veterinário exclusivo comercializados no Brasil, entre elas, a falta de informações dos excipientes usados na formulação, que por sua vez, podem ser responsáveis por reações adversas nos animais.

março 3, 2025
17:25
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Sumário

Imagem: Canva

Reportagem de Mariana Perez, jornalista

No Brasil, quem regulamenta a fabricação dos medicamentos para uso humano é Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e para uso animal é o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). Contudo, o registro de um medicamento de uso veterinário exclusivo não segue as mesmas regras no que diz respeito à elaboração das bulas, um documento sanitário essencial para correta utilização do produto, bem como para eficácia e segurança do animal e, para a saúde humana.

E quem chama a atenção para isso é a farmacêutica e bioquímica, mestre e doutora, Janaína Cecília Oliveira Villanova, docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Veterinárias (PPGCV), na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), no campus da cidade de Alegre, no sul do estado do Espírito Santo.  “Os medicamentos de uso veterinário exclusivo têm especificidades farmacológicas e farmacoterapêuticas no que diz respeito às diferenças fisiológicas entre animais e humanos e, entre as inúmeras espécies animais, obviamente. Mas no que diz respeito, aos insumos farmacêuticos que compõem o medicamento e os processos produtivos, estes são os mesmos preconizados para os medicamentos de uso humano”.

Janaína Cecília Oliveira Villanova, farmacêutica e bioquímica (UFJF), mestre em Ciências Farmacêuticas (USP), doutora em Engenharia de Materiais (UFMG), docente e coordenadora do Programa Pós-Graduação em Ciência Veterinárias (PPGCV) e professora da graduação em Farmácia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).  

Janaína destaca que a Anvisa é uma agência regulatória muito criteriosa, pois é uma das autoridades membros do Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica (PIC/S) e do Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Medicamentos de Uso Humano (ICH). “A legislação é bem fundamentada e rigorosa. As normas de inspeção, as boas práticas de fabricação, entre elas para a elaboração de bula, regulamentadas pela Anvisa estão harmonizadas com as de outros países. Isso significa que esses países harmonizam suas boas práticas e se um país vai vender um medicamento para o outro, não precisa ir ao local fazer a inspeção nas plantas fabris antes da comercialização. Um dos avanços regulatórios promovidos pela ANVISA nos anos 2000 foi exigir a inclusão do tipo de excipiente nas bulas. Não a quantidade, apenas o tipo”.

De acordo com Janaína, embora alguns laboratórios farmacêuticos ficassem receosos sobre a inserção dos nomes dos excipientes nas bulas, pois acreditavam que a fórmula do medicamento seria copiada, não há como isto acontecer. “Como não há descrição da quantidade destes componentes, não há motivos para não inserir esta informação tão importante, já que cada laboratório deverá desenvolver sua formulação para registro e comprovar sua qualidade segundo as especificações farmacopeicas. No entanto, esta informação visa alertar prescritores e pacientes sobre a presença de excipientes que podem causar reações adversas”.

Ao contrário da ANVISA, o MAPA não exige a inserção dos nomes dos excipientes nas bulas de medicamentos de uso exclusivo animal. Embora os excipientes sejam indicados nos dossiês de registro dos produtos farmacêuticos, é preciso esclarecer que os prescritores e tutores dos animais não têm acesso a este documento. “A bula é um documento técnico-científico destinado a trazer todas as informações que são importantes para o uso racional dos medicamentos, incluindo os componentes que podem ser associados a reações adversas em espécies animais, a dose e o período de uso, a forma correta de administração e armazenagem, bem como as possíveis reações adversas que podem ser observadas. Ainda, as bulas devem ser facilmente legíveis e seu conteúdo, compreendido.”

O papel dos excipientes e seus perigos

Você já parou para pensar que os medicamentos, além do princípio ativo, possuem outras substâncias que desempenham um papel essencial na sua formulação? Essas substâncias são chamadas de excipientes e não possuem efeito terapêutico desejado, mas são fundamentais para garantir a estabilidade química, física e microbiológica dos produtos, bem como assegurar uma biodisponibilidade adequada, além de corrigir o sabor e a textura do produto, melhorando a aceitação. Além disso, eles podem influenciar a forma como o fármaco é liberado no organismo, tornando sua ação mais rápida ou prolongada, conforme a necessidade do tratamento.

Há muitos trabalhos científicos relacionados aos efeitos e impactos dos excipientes na saúde humana. “Por exemplo, há dados sobre reações adversas ao uso da lactose usada como diluente em comprimidos e cápsulas para quem é intolerante; da sacarose em xaropes para quem é diabético; do aspartame para quem é intolerante a fenilalanina; de agentes osmóticos como sorbitol; ao propilenoglicol administrado topicamente, especialmente em infantes; sobre sulfitos em produtos para tratar condições gripais; e, sobre conservantes e antioxidantes em colírios. Sabemos também que há muitas pessoas alérgicas aos corantes. São muitos dados e estudos relacionados a cada excipiente e as reações adversas na saúde humana. Quando causam reações adversas, são chamados excipientes de preocupação e é muito importante destacar que as reações adversas podem ocorrer mesmo quando os excipientes são empregados nas quantidades previstas e nas condições corretas de uso e via de administração. Já para os animais, há poucos dados ou estudos sobre as reações adversas aos excipientes”, alerta Janaína.

Demanda que levou a estudo

Essa lacuna de informações relacionada aos medicamentos de uso veterinário exclusivo, em especial a falta de informações sobre os excipientes nas bulas, uniu as áreas de medicina veterinária e farmácia em um trabalho de Mestrado, quando Janaína orientou a médica-veterinária Vanessa Cola Thomazini, no PPGCV/UFES. O trabalho foi coorientado pela professora Cristiane dos Santos Giuberti, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas (PPGCFAR).

Vanessa Cola Thomazini, médica-veterinária, inspetora municipal em Vargem Alta (ES), mestre em Ciências Veterinárias pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e atualmente doutoranda pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

O trabalho consiste em três etapas: a primeira foi fazer uma extensa revisão da literatura para buscar relatos de reações adversas a excipientes em animais. Em seguida, bulas de medicamentos de uso humano usadas na farmacoterapia veterinária foram analisadas para pesquisar a presença de excipientes de preocupação para a população animal. Na terceira etapa, a legislação da ANVISA e do MAPA para bulas foram comparadas a fim de destacar as diferentes exigências entre elas. A principal diferença foi a ausência da lista de excipientes nas bulas de uso veterinário exclusivo, entre outras muito relevantes.

De acordo com Vanessa, o tema chamou sua atenção, pois foi algo que ela nunca tinha pensado. “O trabalho demandou uma pesquisa muito extensa em todas as suas etapas. Fizemos uma seleção dos medicamentos que iríamos utilizar e não poderiam ser os genéricos. Seguimos um padrão para não sair do foco que era estudar os excipientes. E na literatura, de uma forma geral, há poucos trabalhos relacionados ao tema quando falamos em excipientes na medicina veterinária. A listagem dos medicamentos foi feita com base naqueles medicamentos de uso humano, mas que tem permissividade para uso animal. Fizemos essa busca de excipientes em medicamentos líquidos, sólidos e semissólidos, porque para cada tipo de medicação há um excipiente”, explica Vanessa.

O trabalho resultou em três artigos publicados com os títulos: “Impacto de Excipientes Preocupantes na Segurança Animal: Insights para a Farmacoterapia Veterinária e Considerações Regulatórias”, Inconsistências na qualidade das informações nas bulas de medicamentos para uso veterinário comercializados no Brasil e “Excipientes preocupantes nas bulas de medicamentos de uso humano prescritos na farmacoterapia veterinária: frequência e implicações para a saúde animal”.

No primeiro artigo, foram identificados os excipientes de preocupação, com maior potencial de risco para os animais, como:

  • Xilitol: pode causar, entre outras reações adversas, hipoglicemia e insuficiência hepática em cães;
  • Propilenoglicol: pode induzir hemólise e depressão do sistema nervoso central em gatos e cavalos;
  • Polietilenoglicol (PEG): pode ser relacionado a toxicidade renal em macacos e cães;
  • Lauril sulfato de sódio: pode causar irritação e úlceras gastrointestinais em cães e gatos;
  • Benzoatos: podem ser tóxicos para gatos e aves;
  • Álcool benzílico: aAssociado à toxicidade neurológica e respiratória em cães e gatos.

No segundo artigo, foram apresentadas as principais inconsistências das bulas de medicamentos veterinários exclusivos. Das 256 bulas analisadas, 252 apresentavam pelo menos uma não conformidade conforme a legislação do MAPA e, outras informações relevantes não previstas nas bulas segundo o MAPA mas, que contribuem para o uso racional e seguro dos medicamentos para a população animal. Além da ausência descrição qualitativa dos excipientes outras informações críticas são:

  • Via de administração e sobre tipo de administração (interna ou externa, local ou sistêmica);
  • Dados farmacocinéticos e farmacodinâmicos dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs);
  • Indicações de reações adversas potenciais;
  • Fatores de equivalência entre o sal e a base ou a forma anidra e hidratada do IFA;
  • Relação entre o número de gotas e a dose administrada (para formas líquidas);
  • Dados de contato do serviço de atendimento ao consumidor (SAC).

No terceiro artigo, o estudo demonstrou que diversos excipientes preocupantes estão presentes nas bulas de medicamentos humanos administrados para animais, com risco potencial de causar reações adversas em populações suscetíveis. É necessário que os médicos-veterinários reconheçam os excipientes de preocupação e os identifique nas bulas para que substituam o medicamento por outro, isento do excipiente de preocupação em sua composição ou que mandem manipular um medicamento em farmácias magistrais especializadas em medicamentos de uso veterinário, para as populações permitidas. Estas opções são permitidas segundo a cascata de prescrição de medicamentos veterinários.

Uma visão interdisciplinar

De acordo com Janaina, é preciso ter mais integração e comunicação entre as áreas veterinária e farmacêutica. “As grandes indústrias de produtos veterinários têm farmacêuticos no grupo de desenvolvimento de produtos deles, mas o MAPA não enxerga a importância do profissional farmacêutico no que diz respeito à sua presença nos processos regulatórios e normativos, como o estabelecimento das boas práticas de fabricação, elaboração de documentos de fabricação entre, os quais, as bulas e da pouca atuação do farmacêutico na dispensação dos medicamentos de uso veterinário. Há muitas questões que o farmacêutico pode orientar de forma mais assertiva em relação ao uso correto. Por exemplo, se o medicamento pode ser partido ou não. Há muitos veterinários que não sabem a utilização correta de determinados medicamentos e claro, não é obrigação dele saber. Por outro lado, o MAPA não informa e não apoia a inserção do farmacêutico dentro do contexto da farmacoterapia veterinária”.

Janaina menciona, como exemplo, o medicamento omeprazol, que existe na versão para uso exclusivo veterinário e a versão para uso humano. “Vou mencionar um exemplo que acontece com humanos. Há médicos que orientam os pais das crianças a darem o omeprazol partido ou triturado junto com alimentos. Nesses casos, após a administração é comum a criança apresentar vômitos com resíduos roxos ou marrons. Isso acontece, porque, ao triturar o omeprazol, ele perde o revestimento, que consiste de um excipiente, e protege o medicamento do pH ácido do estômago. Assim o omeprazol oxida e tem sua dose eficaz reduzida, comprometendo o efeito terapêutico e a segurança do tratamento. Ao chegar no consultório muitos médicos também não sabem o que são estas partículas coradas nos vômitos. O mesmo acontece com médicos-veterinários que prescrevem omeprazol para animais e orientam o tutor a partir ou triturar o omeprazol. Isso é algo que médicos e médicos-veterinários muitas vezes não sabem e o farmacêutico é quem pode dar essa orientação sobre a forma correta de administração dos medicamentos em geral”.

Na avaliação de Vanessa, esse trabalho foi de muita contribuição, não só para a medicina veterinária como para a saúde única. “Nenhuma classe profissional deveria se fechar para as outras áreas, inclusive a medicina veterinária. Quando falamos de saúde, falamos de saúde única e precisamos andar em conjunto para haver melhorias. Muita coisa que se faz na medicina veterinária e é aprimorada para usar na medicina humana ou vice-versa”.

Atualmente Vanessa se dedica a um doutorado na área da resistência dos medicamentos anti-helmínticos em ovelhas e estuda o combate com a utilização de fungos como forma de controle biológico. Ela destaca que esse trabalho relacionado à resistência aos medicamentos traz outro alerta importante com relação a utilização correta dos medicamentos. “Fazer o uso de forma incorreta como não respeitar dosagem ou tempo de uso de medicamentos antimicrobianos e antiparasitários tem impacto direto na resistência aos microrganismos e parasitos, uma preocupação mundial da Organização Mundial de Saúde. Hoje a maioria dos anti-helmínticos que utilizamos não tem o mesmo efeito de antes”, lamenta Vanessa.

Em 2017, quando Janaína ingressou no Programa Pós-Graduação em Ciência Veterinárias, a área de desenvolvimento de produtos farmacêuticos de uso veterinário coordenada por um farmacêutico dentro de uma pós-graduação, era pioneira no país. Janaína conta que ainda hoje o PPGCV/UFES se destaca, com um grupo de professores que estudam insumos farmacêuticos ativos (IFAS) alternativos para uso veterinário, como bioinsumos e formas de controle biológico, bem como de novos produtos farmacêuticos, alinhados aos objetivos de desenvolvimento sustentável da agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Em 2025, foi iniciado um estudo da legibilidade e compreensão do conteúdo de bulas de medicamentos de uso veterinário exclusivo por médicos-veterinários e tutores de animais, que conta com a participação de alunos do PPGCV, PGCFAR e do Programa de Pós-graduação em Assistência Farmacêutica (PPGASFAR) da UFES.  

Capa Edição 123 - Março de 2025


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abril 24, 2025
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