
O perigo das bactérias resistentes já não é mais assunto para o futuro, é uma realidade que envolve toda a sociedade. Uma responsabilidade de profissionais da saúde, como é o caso dos médicos-veterinários de animais de companhia, que devem agir de forma correta e orientar os tutores
Imagem: Canva
Reportagem de Mariana Perez, jornalista
Falar de superbactérias é falar de saúde única. Apesar de não haver muitos dados e pesquisas relacionadas à resistência de antimicrobianos na medicina veterinária de pequenos animais no Brasil, não é difícil de perceber que o cenário não é nada bom, basta analisar os dados assustadores da medicina humana, principalmente em ambientes hospitalares, além do que acontece na própria rotina veterinária. Mudanças urgentes na conduta são necessárias.
O estudo de Jim O’Neill (Líder da comissão internacional encarregada de investigar a resistência antimicrobiana global pelo governo inglês), pelo Global Action Plan On Antimicrobial Resistance, publicado em 2017, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), chamaram a atenção para o assunto sobre a resistência antimicrobiana por meio de um dado que assustou a todos. Estima-se que até 2050, cerca de 10 milhões de pessoas ao ano e um acumulado de 100 trilhões de dólares em produção econômica estejam em risco devido ao aumento da resistência a antimicrobianos, caso não sejam adotadas soluções proativas que encarem seriamente esse problema.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a resistência à antibióticos é um risco a saúde pública e é motivada, principalmente, pelo uso indevido e excessivo de antibióticos. Nesse contexto, não podemos esquecer que na medicina veterinária essa responsabilidade é tão grande quanto na medicina humana, e o uso indevido e excessivo também é de responsabilidade de médicos-veterinários e tutores, ou seja, de toda a sociedade.
Para o microbiologista, doutor, Cláudio Marcos Rocha de Souza, chefe adjunto do Laboratório de Bacteriologia Aplicada a Saúde Única e Resistência Antimicrobiana do Instituto Oswaldo Cruz - Fiocruz (ver currículo completo na foto), e que está no último ano do curso de medicina veterinária, estamos vivendo um período de quebra de paradigmas. “Cada vez mais é fundamental que o pensamento de ‘compartimentalização’ e de ações individualizadas sejam substituídas por abordagens multidisciplinares e integrativas. Essa mudança de paradigma deve ultrapassar as fronteiras da saúde humana, animal e ambiental, buscando uma visão mais única e ecológica não somente das doenças zoonóticas, mas também do aumento alarmante da detecção de bactérias multirresistentes e da disseminação de diferentes genes de resistência. Essa quebra de paradigma é muito importante, pois agora temos uma visão integrativa. Qualquer impacto que ocorre na saúde humana, influencia diretamente no ambiente e na saúde animal, não só os de companhia e produção, como também os silvestres, que são muitas vezes negligenciados e são carreadores de microrganismos”.
Cláudio Marcos Rocha de Souza, microbiologista, possui mestrado em Microbiologia (Bacteriologia Clínica), doutorado em Ciências (Microbiologia Médica) e pós-doutorado pela Hebrew University of Jeruralem (2008). Atualmente é tecnologista em Saúde Pública, trabalha como curador da Coleção de Culturas de Bactérias de Origem Hospitalar (CCBH) - Laboratório de Infecção Hospitalar (LAPIH), IOC (FIOCRUZ).
A médica-veterinária, Camila Molina, mestre em fisiopatologia e que atua na área de cuidados intensivos e emergência veterinária (ver currículo completo na foto), ressalta que a resistência antimicrobiana é um problema de saúde única e pública mundial, e os médicos-veterinários têm uma grande responsabilidade nesse contexto. “O uso com critério poderá contribuir para que o cenário não evolua desfavoravelmente de forma tão rápida, que é o que vai acontecer se nada for feito. O índice de mortalidade relacionado à resistência antimicrobiana é muito grande e, não só na medicina veterinária, estou falando da mortalidade humana. Talvez a mortalidade relacionada ao tema, na medicina veterinária, seja até maior do que na medicina se considerarmos proporcionalmente”, completa Camila.
Camila Molina, médica-veterinária, pós-graduada em emergência, terapia intensiva e endocrinologia, mestre em fisiopatologia pela Faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), da Recover (certificação em reanimação cardiopulmonar), pelo ACVECC, certificada em cuidados intensivos pela LAVECCS, instrutora da ABC Trauma, atende na área de endocrinologia em dois grandes hospitais veterinários de São Paulo (SP), atende por teleconsulta e é a atual presidente da BVECCS.
Na medicina veterinária, o uso indevido dos antimicrobianos, na maioria das vezes, de acordo com Camila, está relacionado a graves falhas técnicas como, dificuldade na individualização de cada caso, falta de conhecimento sobre as classes antimicrobianas e utilização de associações indevidas, bem como espectro de ação.
O uso indevido de antibióticos de largo espectro, segundo Cláudio, é um fator comum, tanto na rotina veterinária quanto na medicina humana. “Por exemplo, eu tenho um antibiótico A que tem um espectro mais reduzido e que será eficiente naquele processo infeccioso. Mas eu optei por usar um antibiótico de maior espectro de uma geração mais nova. Ao fazer isso eu queimei etapas e gerei uma pressão seletiva sobre um fármaco que não deveria ter sido utilizado como primeira escolha”, alerta.
Cláudio lembra que existe uma premissa que diz: “‘A clínica é soberana’. Ao fazer uma boa anamnese, o veterinário pode suspeitar de muitos processos infecciosos, até mesmo bacterianos. Coletas de materiais adequados para cultura e a realização de antibiograma poderiam ajudar na escolha mais racional de antibióticos adequados ao processo infeccioso investigado. Contudo, há muitos casos em que o veterinário não faz a coleta de material para saber qual o agente infeccioso daquele caso, pois não é visto como uma prioridade e existe um custo associado, o que acaba sendo um impeditivo, contribuindo ainda mais para a pressão seletiva sobre os fármacos escolhidos. Em ambiente hospitalar, isso favorece o desenvolvimento de casos como do Staphylococcus aureus resistente à oxacilina e meticilina, um MRSA. O que é muito semelhante ao que é encontrado em ambiente hospitalar humano”, analisa Cláudio.
Camila avalia que o uso indevido dos antibióticos por parte dos médicos-veterinários está, principalmente, ligado à formação veterinária inadequada de muitas faculdades. “Diante do ensino deficitário, principalmente frente a um número tão grande de faculdades de veterinária no Brasil, os profissionais saem despreparados para o mercado, tomando decisões equivocadas e sem critérios no momento da escolha da terapia. A dificuldade em isolar o patógeno da forma correta, individualizar e fazer associações adequadas, faz com que diversas classes sejam utilizadas, por vezes em conjunto, contribuindo para a pressão de seleção e contribuindo para a resistência antimicrobiana. Então, é preciso entender que essa falha na formação deve ser complementada com pós-graduação, cursos direcionados, simpósios e eventos sobre o tema. Por isso, é importante e fico feliz em divulgar essas informações em eventos, redes sociais e veículos de comunicação”.
A questão da comercialização de antibióticos sem controle na medicina veterinária, na avaliação de Cláudio, também é algo que precisa ser revisto. “Na medicina humana é mais controlado, se comparado com a medicina veterinária. Embora seja obrigatória a receita e que o médico-veterinário seja o único profissional capaz e habilitado para a prescrição, na prática isso é diferente. Um tutor pode facilmente comprar um antibiótico veterinário sem a prescrição. Isso resulta em fármacos na mão de uma população leiga, que não sabe a posologia, para que o fármaco serve e o seu tempo de uso. O que vai gerar uma pressão seletiva com o uso inadequado”.
Na medicina veterinária, falhas na vigilância, uso inadequado na rotina, ausência de métodos padronizados e pontos de corte os diferentes antibióticos contribuem para o aumento da resistência bacteriana e dificultam a prescrição racional, impossibilitando determinar se uma cepa bacteriana é clinicamente resistente. “Já avançamos muito com o BrCast-veterinário (Comitê Brasileiro de Testes de Sensibilidade), mas ainda temos muito a avançar”, analisa Cláudio.
Além disso, Cláudio ressalta que, em 2022, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) desenvolveu diretrizes para o uso racional de antimicrobianos em cães e gatos, visando reduzir a resistência bacteriana e proteger a saúde animal e pública. Estudos apontam práticas inadequadas e contaminação em ambientes hospitalares. Diagnósticos como coloração de Gram, cultura e antibiograma são fundamentais para orientar a escolha de antimicrobianos veterinários, evitando o uso de medicamentos humanos. As diretrizes também reforçam medidas de biossegurança, controle de infecções, protocolos preventivos e educação contínua de profissionais e tutores, promovendo práticas mais seguras na medicina veterinária. Para mitigar esses problemas, são essenciais protocolos rigorosos de prevenção e controle de infecções, incluindo o uso racional de antimicrobianos e medidas de biossegurança em ambientes veterinários. A conscientização e a adoção dessas práticas são fundamentais para reduzir os impactos das infecções hospitalares em cães e gatos.
São poucos os estudos sobre a utilização de antibióticos e a resistência em animais de companhia, se comparado ao que já se tem estudado em animais de produção e animais silvestres. A falta de dados sobre o que ocorre no consultório médico-veterinário, além da falta de orientações mais específicas sobre o que se deve ser feito em cada situação contribuem para o uso indevido.
De acordo com Cláudio, o que se tem hoje são dados de hospitais veterinários que estão quase sempre associados às universidades estaduais e federais. “Temos que levar em conta que no Brasil o maior percentual de produção científica está concentrado em instituições públicas. Mesmo com todos os problemas, ainda temos uma formação acadêmica extremamente qualificada nas diferentes universidades públicas, isso é inquestionável, é só olharmos a quantidade de publicações em revistas indexadas e de alto impacto. Essas produções mostram que os principais patógenos incluem Staphylococcus spp., Pseudomonas spp. e Escherichia coli, com crescente preocupação em relação à resistência antimicrobiana, como observado em Staphylococcus aureus e Staphylococcus pseudintermedius resistentes à meticilina. Além disso, a contaminação ambiental em hospitais veterinários evidencia a presença de microrganismos multirresistentes, expondo profissionais e estudantes a riscos que também ameaçam a saúde pública”, ressalta Cláudio.
Leia também o artigo “The Use of Antibiotics and Antimicrobial Resistance in Veterinary Medicine, a Complex Phenomenon: A Narrative Review”
Confira as partes 2 e 3 dessa reportagem:
2 - Os sete erros mais comuns da terapia antimicrobiana na medicina veterinária (Parte 2)
3 - Monitoramento da resistência antimicrobiana na medicina humana (Parte 3)
O perigo das bactérias resistentes já não é mais assunto para o futuro, é uma realidade que envolve toda a sociedade. Uma responsabilidade de profissionais da saúde, como é o caso dos médicos-veterinários de animais de companhia, que devem agir de forma correta e orientar os tutores