
No Brasil, pesquisas demonstram que existe uma conexão entre as formas de violência, sobretudo em âmbito familiar. Dessa forma, a violência contra animais não é um fator isolado na sociedade, pois faz parte do contexto que estão inseridos, podendo estar relacionados à violência contra mulher, crianças e idosos
Imagem: Canva
Reportagem de Mariana Perez, jornalista
Casos de agressões contra animais praticados por crianças, chocaram o Brasil recentemente. Entre esses casos, um dos que mais repercutiu, está a de um menino de nove anos, que matou de forma brutal 23 animais em uma fazendinha veterinária, na cidade de Nova Fátima (PR).
As agressões praticadas por uma criança é um grande sinal de alerta, nos trazem muitos questionamentos e revelam um ciclo de violência que está presente em muitos núcleos familiares, ciclo esse que continuará a ser perpetuado se nada for feito.
Ao escolher a medicina veterinária como profissão, a maioria das pessoas não tem o entendimento e a dimensão
das responsabilidades que terá em mãos. Entre elas, seu importante papel no cenário da violência familiar. E sobre isso, conversamos com a doutora no assunto, a médica-veterinária que atua na área de medicina veterinária do coletivo e faz parte da Comissão de Medicina Veterinária do Coletivo do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV-MG), Laiza Bonela Gomes, autora da tese de doutorado sobre “A conexão entre as violências: um diagnóstico da relação entre os maus tratos aos animais e a violência interpessoal”, defendida na Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Laiza Bonela Gomes, médica-veterinária da Comissão de Medicina Veterinária do Coletivo
do CRMV-MG
Segundo Laiza, todos nós somos impactados por essa violência e é dever de todos agir de acordo com suas responsabilidades.
E, pensando no papel do médico-veterinário, ela destaca que esse dever é ainda maior. “O veterinário é um profissional de saúde e como tal tem uma competência privativa a ele de responsabilidade na saúde única que é a indissociabilidade da saúde animal, humana e ambiental. Não há outro profissional mais habilitado para cuidar da saúde única do que o médico-veterinário. Ele é um dos atores principais dentro dessa realidade das conexões entre as violências, pois recebe as famílias multiespécies e os cães e gatos são uma extensão da família. Esses animais experimentam coisas boas e ruins que essas famílias vivenciam e, a violência, infelizmente está inserida nesse contexto”.
De acordo com Laiza, o médico-veterinário precisa ter conhecimento da correlação entre as formas de violência. “Só a partir do conhecimento ele consegue identificar precocemente. E a partir do momento que ele identifica, ele pode educar ou sensibilizar aquele núcleo familiar”.
Além disso, o médico-veterinário pode ser um interventor, mas não de maneira direta. Laiza explica que ele vai agir na intervenção, criando uma ponte entre órgãos de responsabilidade desse assunto. E é essa a função do médico-veterinário. “Se ele identificou de maneira precoce, fez o processo de educação e sensibilização, obviamente se couber naquela situação. Caso contrário, ele parte para o próximo passo que é ser um grande interlocutor entre órgãos de responsabilidade neste cenário e vai acionar o conselho tutelar, se tiver a suspeita de que há uma criança sendo negligenciada, acionar o órgão de zoonoses, que é de responsabilidade do município, acionar o órgão protetor dos animais, ou ainda, acionar a assistência social para fazer uma visita na residência daquela família. São essas pontes que o veterinário pode fazer. Dessa forma, esses órgãos unidos podem estabelecer a melhor estratégia para aquele núcleo familiar”.
A médica-veterinária, presidente da comissão estadual de medicina veterinária legal do Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia (CRMV-BA), Lívia Peralva, explica que os animais apresentam comportamento diferente e lesões especificas. “Esse profissional precisa ser muito cuidadoso, porque nem sempre é possível fazer esse diagnóstico no primeiro contato”.
Lívia Peralva, médica-veterinária
presidente da comissão estadual de medicina veterinária legal do CRMV-BA
Além disso, Lívia explica que para fazer uma denúncia é preciso estar bem embasado tecnicamente. “Esse médico-veterinário deve comunicar o seu conselho regional e pode também registrar um boletim de ocorrência, pois se trata de um crime. Mas isso só deve ser feito quando houver a certeza do que está acontecendo de fato”, explica.
Para Lívia, o médico-veterinário é um sentinela na identificação de maus tratos, pois o animal normalmente é a primeira vítima. “Hoje há um número maior de médicos-veterinários que estão mais atentos às situações que chegam no consultório. Além disso, ter um médico-veterinário nas equipes de segurança pública ajuda muito a sociedade a identificar e prevenir a violência familiar que se inicia com o elo mais fraco. Em uma casa onde há violação de direitos animais, com certeza há violação de diretos das mulheres, de crianças ou de idosos”.
Outro ponto importante, quando falamos no elo da violência contra animais, é a violência psicológica. Lívia destaca que muitos agressores usam os animais como objeto de tortura para fazer sofrer principalmente, mulher e criança. “A violência não é só física, existe também a violência psicológica. Em muitos casos, os agressores são homens que agridem os animais para atingir outros membros da família, principalmente mulheres e crianças”.
A violência cometida por uma criança é um grande sinal de alerta, pois ela pode estar sofrendo violência ou testemunhando alguma forma de violência. E ao crescer nesse ambiente, as chances dessa criança se tornar um agressor no futuro são altas. Em alguns casos, essa criança pode ter psicopatia, mas isso precisa ser investigado e diagnosticado por um psiquiatra.
De acordo com Laiza Gomes, a teoria do elo se baseia na violência gerada por um adulto abusando, maltratando ou violentando (pode-se usar vários sinônimos), um animal, uma criança, uma mulher, um idoso, ou seja, um vulnerável, e é resultado desse indivíduo ter sido também vítima de violência quando criança, seja como vítima direta ou apenas testemunha.
Estudos mostram que essa violência vai sendo perpetuada ao longo das gerações se não tiver uma intervenção, se nada quebrar esse elo. Uma das bases mais importantes da teoria do elo é mostrar que o modelo familiar é capaz de predizer comportamentos do indivíduo na vida futura. “Muitas pesquisas mostram que quando um indivíduo faz parte de um contexto familiar muito conflituoso de violência, de trauma, de laços familiares enfraquecidos, o deixa em vulnerabilidade maior sofrer a violência no futuro, mas também para ser um potencial agressor. Ser um agressor no futuro é uma tendência que mostram as pesquisas, não necessariamente algo que certamente ocorrerá, mas é algo que acontece com a maioria. Em alguns casos, o indivíduo se torna o agressor ainda na infância, principalmente contra animais. Recentemente ficamos chocados com alguns casos que repercutiram de crianças cometendo maus tratos contra animais”., destaca Laiza.
A pergunta que precisamos fazer segundo Laiza é “Como tem sido o núcleo familiar dessas crianças e que tratamento que elas têm recebido? A ciência mostra que há uma tendência na repetição de comportamentos. Essa criança pode estar repetindo algo que ela vê ou sofre”, afirma.
A conexão dos tipos de violência, conhecida no Brasil como teoria do elo, começou a ser estudada na década de 60, principalmente por psiquiatras forenses que começaram a perceberam a relação que existe entre a violência contra as pessoas e a violência contra os animais, em diversas fases da vida, mesmo quando crianças.
De acordo com Laiza, esse assunto só se tornou ciência de maneira mais robusta, a partir da década de 80, por meio de dois pesquisadores Frank Ascione e Phil Arkow. “Esses pesquisadores elaboraram um conceito com base em pesquisas próprias e anteriores de entrar em um doutorado, trazer o tema teoria do elo”.
A partir de 2017, Laiza começou a estudar para o doutorado, o primeiro sobre o tema no Brasil. O trabalho foi feito baseado em quatro frentes: Superintendência de Inteligência Policial de Minas Gerais, Delegacia Especializada em Crimes Contra a Fauna, Juizado Especial Criminal e a Delegacia Especializada da Mulher. “Foi um trabalho muito desafiador. Os órgãos não tinham uma abertura para esse assunto, pois era algo estranho aos ouvidos. Foram várias tentativas e muita paciência para conseguir as parcerias. O juizado especial criminal abriu as portas pela primeira vez para um médico-veterinário entrar e entender as audiências, dialogar com promotor, isso foi muito rico e importante”, recorda Laiza.
No Brasil, é um fato que os maus tratos aos animais estão correlacionados à violência contra as pessoas. Laiza explica que em cada estado e em cada município isso vai acontecer por fatores diferentes, mas a violência existe.
Na pesquisa de Laiza, feita em Belo Horizonte (MG), foi constatado que mais da metade dos indivíduos que maltratam de animais estão envolvidos com outros tipos de crimes e de várias naturezas, principalmente os violentos como lesão corporal, tentativa de homicídio, lei Maria da Penha e estupro. “Esse é um ponto que não podemos ignorar e com esse estudo conseguimos comprovar uma hipótese que foi levantada em pesquisas anteriores que chama hipótese do desvio generalizado. Significa que um indivíduo que maltrata um animal pode estar cometendo outros crimes concomitantes, pode estar sucedendo ou antecedendo outros crimes. Esse agressor tem um desvio de comportamento e que em algum momento se envolverá em outros crimes”.
Outro ponto constatado é que grande parte das mulheres vítimas de violência relataram que seus animais de companhia já haviam sido vítimas dos parceiros. O uso de álcool e substâncias ilícitas também é outro fator que coloca animais e crianças em maior risco de violência e negligência. “A violência está dentro das famílias e que em algum momento eclode e vira uma violência social. Por isso, é muito importante que os gestores públicos entendam que desenvolver políticas públicas para proteção dos animais não é algo supérfluo. Pelo contrário, é uma maneira de garantir segurança pública, porque quando eu protejo os animais, também estou olhando para o contexto familiar. A partir do momento que conhecemos os fatores de risco, onde está o problema, há possibilidades de quebrar esses ciclos e agir antes que essa violência se torne mais grave”.
Em Minas Gerais, Laiza conta que há uma iniciativa que nasceu a partir de um caso muito cruel. Foi criada uma rede de enfrentamento que colocou diferentes órgãos para dialogar como polícia civil, polícia militar, conselho tutelar, secretaria da saúde e outros. “A violência vai esbarrar em vários setores. As vezes tendemos a achar que ela é de responsabilidade unilateral e não é”, finaliza Laiza.
No Brasil, pesquisas demonstram que existe uma conexão entre as formas de violência, sobretudo em âmbito familiar. Dessa forma, a violência contra animais não é um fator isolado na sociedade, pois faz parte do contexto que estão inseridos, podendo estar relacionados à violência contra mulher, crianças e idosos