Medicina felina: O que é preciso para atender bem a espécie?

As peculiaridades dos gatos são verdadeiros desafios para médicos-veterinários. Por outro lado, essa essência felina, é o que faz com que as pessoas se apaixonem cada vez mais. Confira a entrevista com dois médicos-veterinários de diferentes regiões do Brasil dedicados à medicina felina: Waldemar Tavares, do Rio de Janeiro (RJ) e Mayara Basho, de Curitiba (PR).

agosto 1, 2024
12:33
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Sumário

Reportagem de Mariana Perez, jornalista (Mtb. 56.876/SP)

Em um atendimento médico veterinário, o gato é uma espécie que demanda muito mais do que apenas o conhecimento sobre suas diferenças fisiológicas; é uma espécie que precisa ser entendida por seus instintos. Apesar de ser um animal domesticado, seu comportamento pode ser considerado selvagem, e a ação de luta ou fuga de um felino é uma reação natural a uma situação ou ambiente que ele considera uma ameaça. Entender e respeitar isso é o primeiro passo para um bom atendimento a espécie.

No Rio de Janeiro (RJ)...

O médico-veterinário Waldemar Tavares (@walfelinos) é um desses profissionais que entendeu a alma felina e se apaixonou pela especialidade após sentir na pele a dificuldade em encontrar atendimento felino especializado. Ele recorda que quando era graduando do curso de medicina veterinária não fazia ideia do qual caminho seguir. “Eu sempre fui ‘cachorreiro’, mas na metade da faculdade eu resgatei uma gatinha, a levei para uma consulta na clínica onde eu estagiava e percebi a dificuldade dos médicos-veterinários em atendê-la”.

Waldemar Tavares, médico-veterinário, especializado em felinos - @walfelinos

Na ocasião, um professor da faculdade de Waldemar, que tinha uma clínica exclusiva para gatos, o ajudou com o atendimento da gatinha resgatada e o convidou para fazer estágio no local. Waldemar percebeu então a grande demanda por um atendimento adequado a espécie e quanto uma clínica especializada faz toda a diferença. “Era visível o quanto os gatos precisavam de um atendimento dedicado e de mais pessoas preparadas. Tinha dias que atendíamos 30 gatos de tutores reclamando de outros veterinários, pois ninguém manejava direito o animal”.

A partir desse momento, Waldermar enxergou uma oportunidade e direcionou seus estudos para a espécie e hoje é membro certificado da American Association of Feline Practitioners (AAFP), associação responsável pelo programa Cat Friendly Practice na América.

Diretrizes para o manejo amigável

O programa Cat Friendly Practice é um conjunto de diretrizes, iniciativa global criada e patenteada pela parceria entre as instituições AAFP e International Society of Feline Medicine (ISFM). As diretrizes foram criadas há 12 anos após um estudo feito pelas instituições que detectou aumento no número na população de gatos, mas que, por outro lado, indicou diminuição na ida dos felinos ao médico-veterinário. Waldemar destaca que, essa diminuição apontada no estudo feito pelas instituições internacionais, se devia ao fato de os tutores terem medo e não confiarem nos médicos-veterinários. “Então essas instituições desenvolveram diretrizes com técnicas amigáveis que começam desde o momento de tirar o felino de casa até o momento da consulta”. 

Waldemar explica que ao sair da rotina, o gato pode entrar em um estado de luta ou fuga por conta do estresse que, se inicia na maioria das vezes, pelo simples fato de sair de casa. “O gato é um animal de rotina e previsibilidade, além de se guiar muito pelo olfato e se sentir seguro onde ele impregna o seu feromônio. É importante, por exemplo, orientar os tutores a acostumarem os gatos com a caixinha de transporte em casa, para que o gato entenda que ali é um abrigo seguro e não mais um motivo de estresse. O melhor são aqueles modelos que abrem por cima, permitindo ao veterinário examinar dentro da própria caixa”.

Ao chegar com o paciente na clínica, há detalhes que são muito importantes como o feromônio, a iluminação mais baixa, sons baixos, sala de espera separada. De acordo com Waldemar, com todo esse caminho preparado, quando o paciente chega nas mãos do médico-veterinário, é possível obter resultados diagnósticos mais fidedignos, pois o estresse pode alterar parte do diagnóstico. “Há casos em que vemos os leucócitos aumentados nos exames e muitos veterinários pensam em infecção, mas a alteração foi causada pelo estresse. É isso que as diretrizes de manejo amigável permitem, uma medicina felina mais avançada, que entende as perspectivas do gato, do tutor e do veterinário. Todos os envolvidos precisam ter a alma cat friendly”.   

Outro ponto importante que Waldemar destaca é sempre que possível fazer atendimentos de gatos com horário agendado. “O atendimento amigável é sempre calmo, sem pressa, com a voz baixa, observando a postura corporal do felino, as orelhas. O paciente mostra para você se aquele atendimento vai ser complicado ou não. E o que eu vejo são muitos veterinários superestimam essa reação do gato. É preciso entender que o gato reage por medo e o último recurso dele é o enfrentamento, o que ele quer é fugir”, explica.

A contenção do paciente felino é outro momento que precisa de muito cuidado e, de acordo com as diretrizes de bem-estar felino, o ideal é utilizar mantas ou tolhas para envolver o paciente e nunca conter o gato pelo pescoço. Segundo Waldemar, esse tipo de manejo errado pode causar traumas para o resto da vida desse animal, fazendo que futuras consultas sejam muito mais estressantes e complicadas para todos os envolvidos. “Há tutores que relatam que o paciente ficou muito mais estressado e reativo depois de determinada situação de manejo inadequado em um atendimento veterinário. Não adianta o veterinário querer resolver apenas aquele momento e não pensar que isso pode resultar em dificuldades para as próximas consultas”.

Para Waldemar, o médico-veterinário que vira essa “chave” na medicina felina, de entender e respeitar as características do gato, caminha para a valorização. “É a espécie que mais cresce no Brasil e os tutores clamam por veterinários que atendam bem os gatos e se se fidelizam quando encontram. É claro que a técnica é indispensável, mas muitos tutores de gatos precisam também de acolhimento”, conclui.

Em Curitiba (PR)...

A realidade de Mayara Bansho (@mayarabansho.veterinária) não foi muito diferente na Capital Paranaense. Ela também sentiu na pele a dificuldade de entender mais sobre o atendimento veterinário especializado para gatos durante a graduação. “Eu tinha uma gata que estava um pouco doente na época e eu percebia que os professores não abordavam muito as doenças de gato, era pouco falado. O conteúdo sempre foi maior sobre cães. E quando eu questionava, eles não sabiam responder”.

Mayara Bansho, médica-veterinária, especializada em felinos - @mayarabansho.veterinária

Na época, Mayara procurou saber mais sobre a área da medicina felina e começou a buscar por estágio, e seu primeiro foi na clínica Mania de Gato, com a médica-veterinária Marúcia de Andrade Cruz. Depois disso, seus estudos e estágios foram direcionados para a área de felinos e hoje é uma profissional Cat Friendly certificada pela AAFP. Mayara atende exclusivamente felinos, seja em domicílio, em consultório ou em hospital veterinário.

E o que é melhor: domicílio ou consultório?

Em sua rotina Mayara conta que atende muitos pacientes em domicílio de tutores que preferem evitar o estresse do deslocamento. “Sempre que o tutor entra em contato, pergunto qual o local de preferência e com base nisso fazemos o agendamento da consulta. Há alguns pacientes que o atendimento em domicílio é melhor. Porém, há as exceções. Alguns pacientes por estarem em seu território, ficam mais confiantes e já conhecem as rotas de fuga. Por isso, há casos em que o manejo pode ser melhor no consultório. Mas varia de acordo com o paciente e tutor”.

Ao atender no consultório, Mayara destaca a importância de se ter um ambiente seguro, calmo e com poucos odores. “É preciso cuidar com o uso de desinfetantes e perfumes de maneira geral. Além disso, é preciso ter cuidado com os sons altos. Eu sempre coloco música para relaxar, o que acaba relaxando também os tutores, que muitas vezes chegam estressados. Essa preparação é muito importante”.

No tempo do gato

Com o ambiente preparado, antes do exame físico, Mayara destaca que é preciso deixar o paciente se ambientar e, enquanto isso, o médico-veterinário pode conversar com o tutor para anotar as informações necessárias. “O exame físico não será igual para todos os pacientes, as vezes é preciso fazer por etapas. Por exemplo, examina um pouco e para, depois tenta de novo, é preciso respeitar o momento do gato e manusear conforme ele vai deixando. A aproximação ideal é deixar o gato te cheirar primeiro, ele vai até você. Tem alguns locais do corpo que ele não gosta que toque como barriga e membros. É claro que para examinar é preciso tocar, mas é sempre com muito cuidado e no tempo do paciente. Além disso, é importante evitar olhar fixamente no olho do gato, ele pode considerar uma ameaça. Em alguns casos podemos usar reforços positivos como petiscos e intensificar o carinho”.

Mayara explica que é extremamente importante fazer a leitura do gato. “Por meio das expressões corporais e faciais ele comunica para nós o que está sentindo. A forma como ele está olhando, a posição de orelha, os sons que ele está fazendo, se está com o corpinho muito abaixado. É dessa forma que ele mostra se não está gostando de algo. E ao contrário do cão, por exemplo, balançar a cauda é um sinal negativo. Além disso, nos casos em que o paciente chega com muita dor, é preciso fazer a analgesia antes de continuar a consulta”.

Realizar os exames é outro momento delicado e Mayara ressalta que encaminha seus pacientes para locais preparados para receber felinos. “De qualquer forma sempre oriento o tutor a permanecer junto com o gato quando possível, pois isso vai minimizar o estresse. Levar uma cobertinha com o cheiro dele também pode ajudar e pode ser usada para a contenção”, destaca e finaliza: “É importante ter a consciência de que esses cuidados devem tomados desde as primeiras consultas, pois assim todos serão beneficiados seja o veterinário, o tutor e, principalmente, o paciente. A adoção de gatos aumentou muito no Brasil e conhecer a espécie fará toda a diferença no atendimento, mesmo para o veterinário que não é especializado na área”.


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setembro 10, 2024
12:33

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