Potencial imunomodulador das beta-glucanas

A “imunidade treinada” é crucial para aumentar a resistência geral dos animais em situações de imunossupressão

julho 1, 2024
10:04
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Sumário

A parede celular de leveduras, como a Saccharomyces cerevisiae, é constituída de manoproteínas, β-glucanas e quitina. Enquanto as β-glucanas e a quitina são responsáveis pela rigidez da parede celular e definem morfologia e forma, as manoproteínas e sua porção de carboidrato (α-d-manano) são responsáveis pelo reconhecimento e interações célula-célula, interações com o meio e determinam a especificidade antigênica da levedura. Ambos os tipos de polissacarídeos, β-glucanas e α-mananos, são capazes de modular significativamente o sistema imune por meio de interações específicas com várias células imunocompetentes.

As β-glucanas são polissacarídeos compostos por unidades monoméricas de ß-D-glicose, unidas por ligações glicosídicas nos sítios ß-1,3, ß-1,4 e/ou ß-1,6, podendo apresentar-se tanto de forma ramificada quanto linear. A configuração ß-1,3/1,6-glucano é particularmente estudada devido ao seu forte poder de estimular as defesas do organismo em humanos e animais. Por outro lado, a configuração ß-1,4 não apresenta atividade imunológica significativa, enquanto a ß-1,6 tem uma atividade limitada quando isolada. Células do sistema imunológico inato, como macrófagos, neutrófilos, células dendríticas (DCs) e células NK, possuem receptores de reconhecimento de padrões, como os TLRs (TOLL-like receptors) que identificam padrões moleculares associados a patógenos (PAMPs), presentes em vários microorganismos. As β-glucanas, sendo moléculas altamente conservadas, atuam como PAMPs.

Além dos TLRs, as β-glucanas são reconhecidas por outros receptores, como Dectina-1, CR3 (receptor do sistema complemento), lactosilceramidas e receptores scavenger. Quando as β-glucanas se ligam a esses receptores, iniciam uma complexa cascata de sinalização intracelular, mediada por proteínas quinases ativadas por mitógenos (MAPK), resultando na ativação de promotores gênicos como NF-κB e AP-1, e na produção de várias citocinas, como IL-1, IL-2, IL-6, IL-10, IL-12, IL-23, TNF-α e TGF-β. Essas citocinas estimulam tanto a imunidade celular quanto a humoral, com efeitos tanto pró-inflamatórios quanto anti-inflamatórios. A ativação dos macrófagos e do complemento aumenta a fagocitose e a produção de espécies reativas de oxigênio e radicais livres, auxiliando na destruição de patógenos intracelulares. Além disso, as citocinas induzem a expressão de moléculas de adesão no endotélio, facilitando a migração das células de defesa.

Todo esse processo culmina em um aumento da resposta imunológica contra patógenos e neoplasias. Além disso, as β-glucanas atuam como depuradores de radicais livres, que são fatores importantes no desenvolvimento do câncer.

As β-glucanas funcionam por via oral, não são digeríveis por enzimas e sua absorção principal ocorre no intestino delgado. Embora a administração oral seja tão eficaz quanto a injetável, seu efeito é mais lento. As β-glucanas são captadas e processadas pelas células M e pelas células dendríticas, sendo apresentadas aos linfócitos intraepiteliais, o que contribui para modular a resposta imunitária na mucosa intestinal. Quando as β-glucanas são degradadas pelos macrófagos, são geradas moléculas bioativas e solúveis que podem atuar em receptores do complemento (CR3) em outros granulócitos. Esse processo geralmente requer cerca de 13 dias. Assim, a ingestão contínua de β-glucanas garante uma liberação contínua de partículas bioativas pelos macrófagos na corrente sanguínea, estimulando o sistema imune celular e humoral.

A funcionalidade das β-glucanas não é afetada quando administradas através de alimentos secos, úmidos, snacks funcionais, pastas ou cápsulas. Estudos realizados com β-glucanas com configuração ß-1,3/1,6, extraídas e purificadas de uma cepa da levedura Saccharomyces cerevisiae, mostram que a dosagem pode variar entre 10 e 65 mg/kg de peso corporal por dia por via oral.

Estudos demonstram eficácia contra uma variedade de patógenos, o que os torna promissores para a terapia de processos infecciosos. Eles têm sido observados agindo contra bactérias, vírus, fungos e protozoários, e aumentando a eficácia dos antibióticos em infecções resistentes. Em modelos experimentais, foram demonstrados efeitos protetores em infecções por uma ampla gama de patógenos, incluindo Leishmania major, L. donovani, Candida albicans, Toxoplasma gondii, Streptococcus suis, Plasmodium berghei, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Mesocestoides corti, Trypanosoma cruzi, Eimeria vermiformis e Bacillus anthracis.

Os benefícios da ingestão das β-glucanas são particularmente importantes em situações e momentos em que ocorre uma maior vulnerabilidade do organismo. A defesa contra infecções depende da colaboração entre a imunidade inata e adaptativa. Embora a memória imunológica seja tradicionalmente associada à resposta adaptativa, o conceito emergente de "imunidade treinada" sugere que a imunidade inata também pode desenvolver memória em resposta a estímulos prévios, como β-glucanas e outros adjuvantes.

A "imunidade treinada" é crucial para aumentar a resistência geral dos animais em situações de imunossupressão, estresse e durante procedimentos cirúrgicos, bem como em períodos críticos da vida, como a juventude ou a senilidade.

Estudos em cães mostraram que a suplementação com β-glucanas pode melhorar significativamente vários parâmetros imunológicos, incluindo aumento dos linfócitos T e B, além de promover uma resposta mais eficaz à vacinação contra doenças como raiva e leptospirose. Além disso, a administração prévia de β-glucanas reduziu os níveis de estresse inflamatório em cadelas submetidas a ovário-histerectomia, indicando seu potencial para modular a resposta imune em diferentes contextos clínicos.

As β-glucanas têm demonstrado auxiliar em doenças crônicas, como evidenciado em estudos clínicos e experimentais. Por exemplo, em um estudo duplo-cego controlado por placebo, a influência de ß-1,3/1,6-glucanas na atopia canina resultou em uma melhora de 63% quando comparado aos grupos não tratados. Esta melhora sugere uma possível redução da inflamação por meio da imunomodulação, tornando a terapia benéfica para cães com dermatite atópica.

Desde 1980, as β-glucanas têm sido investigadas como tratamento para o câncer, sendo utilizadas pela primeira vez em ensaios clínicos. Diversos estudos confirmaram sua eficácia contra diferentes tipos de neoplasias, como as encontradas nos pulmões, mamas e trato gastrointestinal. Quando as células tumorais são reconhecidas pelo sistema imunológico, ocorre a produção de anticorpos que se ligam a elas, juntamente com fragmentos de C3b do complemento, desencadeando mecanismos de morte celular por citotoxicidade mediada por anticorpos. As células imunes estimuladas pelas β-glucanas, como macrófagos, células NK e neutrófilos, reconhecem as células tumorais revestidas com anticorpos e C3b, eliminando-as.

As β-glucanas são modificadores de respostas biológicas frequentemente empregadas como adjuvantes em diversas situações clínicas em cães e gatos. Sua aplicação é diversificada e versátil devido aos seus mecanismos de ação abrangentes, tanto localmente quanto sistemicamente. Podem ser empregadas em conjunto com terapias convencionais durante momentos de estresse, períodos pré e pós-cirúrgicos, protocolos vacinais, tratamentos de diversas infecções, controle de níveis de colesterol, triglicérides e glicemia, assim como no manejo de doenças crônicas, incluindo neoplasias. Contudo, é importante ressaltar que as β-glucanas não constituem a terapia principal para nenhuma dessas aplicações clínicas e devem ser utilizadas apenas como adjuvantes, visando aprimorar e otimizar as respostas terapêuticas existentes.

Por Ana Chizzotti, coordenadora Técnica Granvita, médica-veterinária, com mestrado em Nutrição de Cães e Gatos pela Universidade Federal de Lavras (UFLA/MG)

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