
Há alguns medicamentos que são utilizados de forma equivocada e podem gerar, além de efeitos colaterais, resistências de microrganismos, como é o caso dos anti-helmínticos em cães e gatos. Essa discussão envolve não só a saúde dos animais de companhia, como afeta também a saúde única (humana, animal e ambiental)
Por Mariana Perez, da redação
O uso racional de medicamentos é uma discussão que envolve toda a sociedade e, principalmente, os profissionais da saúde que podem orientar e prescrever de forma adequada. No Brasil, o Ministério da Saúde criou o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos (CNPURM), instituído pela Portaria GM/MS nº. 1.555 de 27 de junho de 2007, com caráter consultivo e propositivo, e tem por finalidade orientar e propor ações, estratégias e atividades para a promoção do uso racional de medicamentos.
No Brasil, é comum as pessoas se automedicarem sem a orientação médica. De acordo com uma pesquisa do Conselho Federal de Farmácia (CFF), feita em 2019, a automedicação é um hábito comum a 77% dos brasileiros. No mesmo ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou em relatório que a automedicação pode matar 10 milhões de pessoas, por ano, até 2050 em todo o mundo, devido a complicações do estado de saúde ou resistências de microrganismos. Além da automedicação, a utilização em dosagens inadequadas ou que não seguem diretrizes clínicas, mesmo quando prescritas, também é uma forma de uso incorreto. A Organização Mundial de Saúde (OMS), estima que mais da metade de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou vendidos de forma inadequada, e que metade de todos os pacientes não os utiliza corretamente.
Essa prática também se estende aos animais de estimação. Apesar de não haver estatísticas especificas sobre o assunto na medicina veterinária, sabemos que o hábito dos tutores reflete na rotina dos pets e que a administração incorreta de medicamentos nos animais pode trazer graves problemas, não só para os pacientes, como para a saúde única (humana, animal e ambiental). Além disso, a compra livre de muitos medicamentos, incluindo alguns antibióticos, sem receita em farmácias veterinárias é um outro ponto que pode agravar o cenário atual. Um assunto que há muitos desdobramentos. Nesta reportagem nosso foco é o vermífugo intestinal.
“O vermífugo intestinal é um medicamento utilizado quando há a presença de parasito no organismo. Esse medicamento não previne o contato com os vermes no intestino, mas age quando há a presença do parasito eliminando-o. Contudo, seu uso é frequente e, em muitos casos, prescrito por veterinários, que continuam orientando o uso mesmo sem observar nenhum sintoma ou sem realizar nenhum exame que comprove a presença de algum tipo de verme intestinal”, quem afirma isso é a médica-veterinária do Rio de Janeiro (RJ), gastroenterologista e endoscopista, Raísa Godói.
Raísa Godói, médica-veterinária do Rio de Janeiro (RJ), gastroenterologista e endoscopista com os pacientes Ully e Siggy.
Ela destaca que o vermífugo não é profilático, é uma medicação que só deve ser usada durante o problema, e não como prevenção. “A ideia da prevenção funciona com os repelentes contra mosquitos, carrapato, pulgas que evitam o contato. Mas o vermífugo não evita o contato. Não tomamos xarope para tosse se não estamos tossindo. Um paciente que precisa de um vermífugo é um paciente que precisa de médico-veterinário”.
Raísa explica que como todo medicamento, o vermífugo pode causar efeitos colaterais. “Tenho casos de pacientes que sempre apresentavam diarreia e vômitos após tomar o vermífugo, porque já estavam sendo medicados de forma tão constante e desnecessária que estava fazendo mal ao próprio organismo. Para se ter uma ideia, há tutores que administram vermífugo mensalmente. É uma carga muito alta de medicação e, muitas vezes, sem nenhum alvo que é o parasita, e a droga é organismo do animal que absorve”.
No caso de pacientes filhotes, Raísa explica que a vermifugação deve ser mais constante. “Em filhotes o cuidado é maior, pois eles vêm normalmente de criadores onde o ambiente não tem controle sanitário, ainda não possuem sistema imune, além de muitas vezes, a própria mãe não ser vermifugada, o que acaba colocando os filhotes em ambientes propícios a contaminação. Então nesse caso os filhotes são vermifugados, mas isso também precisa de um veterinário para orientar, pois fazer por fazer, seja qualquer medicação, não adianta. Já o paciente que foi adotado ou comprado e está em um local controlado, não necessariamente precisa ser vermifugado. Tem pacientes que ficam um ou dois anos sem precisar vermifugar, e não é exposto a uma determinada droga sem necessidade. O tutor por sua vez economiza em média 500 Reais no ano, porque o vermífugo é caro”, ressalta.
Na avaliação de Raísa, o que pode ser feito na rotina é a coleta das fezes para a análise. “O cão que está com parasito vai ter sintomas. Claro que há casos assintomáticos e o organismo pode até conseguir debelar o problema sozinho. Contudo, é preciso fazer exames e investigar o histórico e rotina do paciente. Não faça vermífugo sem fazer uma pesquisa parasitária. É muito importante associar a clínica com os exames. Hoje temos uma facilidade de fazer exame de fezes e é mais barato que o vermífugo. O exame de fezes pode entrar na lista do check up. Eu até uso esse argumento para ensinar o cliente de como pode ser mais barato e melhor para a saúde do pet se ele fizer o exame antes. Explico ao tutor que ele vai economizar, o paciente não vai usar nenhuma medicação sem necessidade, não vai causar resistência e não vai correr o risco de causar efeito colateral”.
Para Raísa outro ponto importante é parar de tratar diarreias como se fosse sintoma de giárdia sem antes fazer o diagnóstico correto. “Apesar de ter muitas pessoas já estarem conscientes, outras pessoas continuam paradas no tempo. O cachorro que faz coco com um pouquinho de sangue e muco, todo mundo acha que é giárdia, e não necessariamente é. Além de parasitose pode ser ingestão de corpo estranho, alergia alimentar, intoxicação, estresse, resposta alguma medicação, doença endócrina, pode ser tantas coisas. E como vamos saber? Por meio de exames de fezes, um snap rápido, há muitos protocolos de diagnósticos. Então é preciso direcionar o diagnóstico para não fazer o uso de medicações de forma indiscriminada, pois já existe muita resistência medicamentosa”.
Um ponto importante que Raísa observa e alerta é que cada verme responde melhor a um determinado medicamento. “Nem todo vermífugo pegará o parasita em questão! Então, de acordo com o parasito detectado vamos buscar o melhor antiparasitário. Contudo há algumas medicações com nomes sugestivos na indústria, que controlam apenas a diarreia, mas não resolvem o problema do parasito que o próprio nome sugere”.
Na área de animais de companhia há poucos estudos sobre a resistência de medicações para vermes intestinais, diferente da bovinocultura, ovinocultura e equinocultura, áreas em que se vê cada vez mais estudos sobre a utilização desses medicamentos, a fim de evitar a resistência.
Aliás, um desses poucos estudos na área pet avalia exatamente essa ausência de relatos na área de animais de companhia e foi publicado em dezembro de 2021, no International Journal for Parasitology: Drugs and Drug Resistance com o título “Spread of anthelmintic resistance in intestinal helminths of dogs and cats is currently less pronounced than in ruminants and horses – Yet it is of major concern”.
Nesse trabalho, os autores destacam as possíveis razões para essa discrepância quando se trata em preocupação com a resistência parasitária com a utilização de vermífugo intestinal em cães e gatos se comparada com bovinocultura e equinocultura. Entre essas razões destacadas pelos autores estão diferenças epidemiológicas e biológicas, configuração de criação individual, diferente de bovinos que vivem em rebanho, melhor higiene, além de um número menor da população de parasitos, levando a uma diversidade genética comparativamente baixa nas populações de parasitas.
Contudo, os autores alertam para as descobertas de resistência de múltiplas classes de drogas em A. caninum (Ancylostoma, muito comum em cães) e D. caninum (Dipylidium comum em felinos) nos Estados Unidos, um sinal claro que, na avaliação dos autores, deve alertar veterinários e tutores quanto ao risco potencial de desenvolvimento de resistência parasitária.
Uma revisão mais recente feita no Canadá: “The canine hookworm Ancylostoma caninum: A novel threat for anthelmintic resistance in Canada” e publicado este ano (2023) no The Canadian Veterinary Journal, teve como objetivo revisar os fatores que influenciam o A. caninum a desenvolver resistência e conscientizar sobre a necessidade de um plano estratégico para o controle desse parasita o por meio do uso adequado de anti-helmínticos.
De acordo com o artigo, o verme Ancylostoma caninum é um dos nematoides parasitários mais prevalentes em cães em todo o mundo e tem potencial para transmissão zoonótica para humanos, incluindo o desenvolvimento de larva migrans cutânea. Os autores destacam a recente confirmação de resistência anti-helmíntica (AR) em A. caninum a várias classes de anti-helmínticos, principalmente nos Estados Unidos, e indicam o potencial para esse cenário no Canadá. A revisão considerou vários fatores que podem levar a resistência no Canadá, como o uso generalizado de medicamentos antiparasitários sem avaliação de eficácia, aumento da prevalência de A. caninum em várias províncias canadenses e a importação de cães, principalmente dos Estados Unidos, com histórico de infecção persistente por A. caninum.
Esses artigos são um alerta para o mercado brasileiro, que precisa agir na prevenção de um potencial cenário de resistência anti-helmíntica em animais de companhia. Uma responsabilidade não somente dos tutores de pets que precisam ser conscientizados, como dos médicos-veterinários e toda indústria farmacêutica que, por sua vez, deveria realizar ações de prevenção e orientação tanto de tutores, quanto de veterinários.
Revista Vet&Share 104 - Edição Agosto de 2023
Há alguns medicamentos que são utilizados de forma equivocada e podem gerar, além de efeitos colaterais, resistências de microrganismos, como é o caso dos anti-helmínticos em cães e gatos. Essa discussão envolve não só a saúde dos animais de companhia, como afeta também a saúde única (humana, animal e ambiental)