Alteração de prescrição e falta de retorno do encaminhamento, sem prejudicar a saúde do paciente e o direito de sigilo do cliente, são algumas das situações que podem gerar mal-entendidos e até processos
Por Mariana Vilela, da redação
Há muitas dúvidas e desconhecimento sobre as condutas dispostas no código de ética dos médicos-veterinários. A relação entre colegas é algo delicado e situações como alteração de protocolo estabelecido por um colega, falta de retorno do encaminhamento, identificação de um erro de outro profissional, garantir os direitos do sigilo do cliente, tudo isso sem prejudicar o paciente, podem deixar muitos veterinários sem saber como agir.
Renata Arruda, advogada especialista em direito veterinário
Instagram: @direitovetoficial
A doutora Renata Arruda, advogada especialista em direito veterinário (@direitovetoficial) explica que as situações devem ser analisadas caso a caso, pois, às vezes, a disposição literal ética é difundida como regra, mas existem exceções como, por exemplo, quando a intervenção do profissional é indispensável para a saúde do paciente ou quando há o dever de sigilo envolvido. E para entender melhor alguns desses exemplos e o que isso quer dizer, confira a seguir entrevista completa:
Vet&Share - O médico-veterinário pode alterar tratamento estabelecido por um colega?
O código de ética traz artigo e inciso específico sobre isso: “é vedado ao médico-veterinário alterar prescrição ou tratamento determinado por outro profissional...”, porém, tem uma exceção: “...salvo em situação de indispensável conveniência para o paciente, devendo comunicar imediatamente o fato ao médico-veterinário desse paciente”.
Importante lembrar que deve prevalecer a saúde do animal. Contudo, sendo necessário alterar a prescrição de outro colega é obrigatório comunicá-lo, lembrando de fazer o registro dessa comunicação em prontuário. A dificuldade a respeito desse tema é que não temos, de forma específica, em que situação isso acontece, gerando muitas dúvidas.
Fato corriqueiro e mais tranquilo é quando colegas prestam serviços no mesmo estabelecimento, eles vão, naturalmente, se comunicar e as informações serão trocadas também no prontuário a respeito dos cuidados com o paciente.
Porém, o cenário muda quando esse cliente decide, de forma voluntária, procurar outro estabelecimento. Nessa situação, realmente, há muitos desdobramentos que podem gerar atritos e problemas. No presente caso, a busca do cliente por outro profissional, pode representar uma segunda opinião, equivalendo a uma primeira consulta.
Dessa forma, entendo que estaria desobrigado o profissional a comunicar alguma mudança de protocolo no tratamento, até porque existe o dever de sigilo desse atendimento.
Sendo assim, não havendo um encaminhamento (mesmo que informal) ou se esse cliente não deixou claro que o paciente está sendo assistido por outro profissional, ou seja, que há uma intenção de continuidade, não se aplicaria a referida regra ética nessas situações.
Como nosso objetivo é prevenir problemas, na dúvida, questione seu cliente. Não custa nada procurar entender se o outro veterinário precisa ser comunicado. O cliente pode ajudar a sinalizar se gostaria que o outro veterinário continuasse acompanhando seu animal de estimação.
Esse é um dos pontos mais polêmicos e um dos mais difíceis de serem colocados em prática, pois dependendo da situação, o quadro muda.
Por isso, é muito importante ter cuidado nessa abordagem, registrar em prontuário, para que não haja a violação do sigilo e nem a violação do dever ético entre colegas.
Reforço, para fechar, a importância, como já mencionado antes, do registro da comunicação. O primeiro passo muito importante é registrar em prontuário. Pode escrever que enviou e-mail, pode fazer um upload do próprio e-mail, print do Whatsapp com data e horário, e se fez por ligação, registrar data e horário e fazer um resumo breve da conversa.
Vet&Share - E nos casos em que houve encaminhamento e esse cliente decide continuar todo o tratamento no segundo estabelecimento ao qual foi encaminhado pelo primeiro veterinário?
É outra questão polêmica, pois de acordo com o código de ética é vedado deixar de encaminhar de volta o paciente. O segundo estabelecimento recebe o animal por conta de um serviço especializado e ele tem a obrigação ética de devolver o cliente ao primeiro assim que esse serviço for prestado.
O código de ética dispõe: “É vedado ao médico-veterinário deixar de encaminhar de volta ao médico-veterinário o paciente que lhe for enviado para procedimento especializado, e/ou não fornecer as devidas informações sobre o ocorrido no período em que se responsabilizou pelo mesmo”.
Isso gera muitos problemas, principalmente, aos hospitais veterinários, porque pode acontecer de o cliente chegar nesse outro estabelecimento insatisfeito com o serviço anterior. Esse cliente, novamente, decide, de maneira unilateral, romper relações com o estabelecimento ou profissional que encaminhou o paciente, desejando manter a assistência agora de forma exclusiva no local para onde foi encaminhado.
Com isso, o profissional que encaminhou o paciente, tende a ficar bastante descontente com o não retorno desse outro local a respeito do animal. Na prática, o que acontece, é quebra de relação de confiança do cliente e o primeiro veterinário, motivo pelo qual o cliente exige que as informações não sejam mais repassadas a esse colega ou local.
Para evitar situações embaraçosas, a medida em que a regra ética é no sentido de encaminhar de volta o paciente e repassar informações; o ideal é que o veterinário que encaminhou o animal esteja ciente do novo contexto, ou seja, da determinação do cliente em não mais repassar informações.
O ideal é registrar tudo em prontuário, deixando claro de que houve a iniciativa do próprio cliente em não querer mais contato com o outro profissional. O registro em prontuário é o mais comum e é o que deve prevalecer.
Na rotina, o que pode acontecer, em alguns casos, por puro desconhecimento é o local/profissional não encaminhar de volta e não transmitir mais informações sobre o paciente. Esse silêncio pode ser interpretado ao colega que fez o encaminhamento que estão agindo de maneira antiética. Essa desconfiança acontece, pois infelizmente existem profissionais que atuam de maneira errada.
Por isso, diante da ausência de comunicação, o veterinário que encaminhou o animal pode imaginar que talvez algum colega tenha falado mal dele, tenha feito algum comentário negativo, o que também é vedado pelo código de ética: “é vedado fazer comentários desabonadores sobre a conduta profissional ou pessoal do colega”. O melhor é sempre agir de maneira cautelosa. O estabelecimento que recebeu o paciente encaminhado precisa explicar ao colega que o cliente não está permitindo o repasse de informações e que precisa preservar o direito de escolha cliente, sempre que possível.
Outro ponto no que diz respeito aos encaminhamentos é a percepção geral de que o profissional que encaminhou tem o direito de opinar sobre tudo que for feito nesse paciente, tecnicamente falando.
Existe previsão no código de ética que é dever do veterinário encaminhar o paciente quando determinado serviço foge do seu âmbito de competência, mas não se pode ferir a autonomia profissional do outro colega.
Logicamente, é importante haver alinhamento conjunto, mas quem encaminhou não comanda o serviço alheio. O veterinário que encaminhou pode até participar, mas o comando e a responsabilidade são do outro estabelecimento ou do outro profissional.
Nesse caso voltamos a questão inicial da responsabilidade sobre a saúde desse paciente e no fato de que o protocolo deve ser sim alterado se essencial para garantir a saúde do animal, e isso mitiga a questão antiética de alteração da prescrição do veterinário que encaminhou.
Porém, muitos veterinários não conseguem ponderar isso, porque não aprenderam a pensar assim. É preciso entender o código de ética, conversar com o colega, ter cautela no diálogo para que esse outro veterinário não se sinta ofendido e priorizar a saúde do paciente. Fora isso, saber também abordar o cliente para que ele não pense que o primeiro veterinário não tem conhecimento técnico.
Isso pode acontecer com qualquer especialidade, mas acontece muito nos hospitais, principalmente quando ocorre internação. O hospital lida com dois públicos: um, o responsável pelo animal, e o outro, o veterinário encaminhador. A realidade de quem trabalha em hospital é essa e, juridicamente falando, muitos não estão preparados. Ler o código de ética é uma coisa, aplicar corretamente é outra.
Por conta dessa dificuldade, os profissionais acabam não sabendo como agir, ou se defender ou fazer valer um direito. O que mais vejo na prática são situações de crise e isso acaba gerando perda de tempo produtivo dos profissionais nas empresas. Não necessariamente vai gerar um processo, mas gera perda de energia e muito desconforto.
Vet&Share - E nos casos em que se constata ou se considera que o colega errou?
Uma coisa é você perceber o erro e agir para que o paciente não seja prejudicado, outra é explicitar e gerar algo muito maior referente a opinião técnica divergente, o que tende a virar um processo ético e judicial. Isso acaba provocando uma discórdia que vai inflar o judiciário, vai motivar um processo desnecessário e que poderia ser resolvido com uma conversa
Voltando a falar do código de ética, quando expõe que é vedado fazer comentários desabonadores sobre a conduta profissional e pessoal do colega, muitas pessoas têm dúvidas sobre o que é desabonador. Desabonador quer dizer comentário desfavorável, hostil, que gera uma ideia de difamação, calúnia, algo negativo ou degradante. Isso precisa ser evitado.
Já vi nas redes sociais um veterinário fazendo como uma espécie marketing pessoal, postagens sobre o suposto erro de outros colegas. Ao fazer isso ele pode estar ferindo algumas regras, uma delas é exatamente essa, da vedação de se fazer comentários desabonadores à conduta e pessoa de outro veterinário, bem como do dever de comunicar ao CRMV, com descrição de forma fundamentada, fato que tenha conhecimento que configure infração ao código de ética, leis ou normas que regem a profissão. A autopromoção com exposição do erro de outros colegas, por mais que não se esteja identificando o nome do profissional, expõe para o cliente e prejudica a profissão.
Além disso, esse tipo de conteúdo é degradante para a medicina veterinária de forma geral. Essa fama da veterinária é muito ruim, ouve-se muito que a classe não é unida, que o veterinário gosta de diminuir o colega e que há uma concorrência desleal. Só mudaremos esse cenário com conhecimento.
Vet&Share – E quais recomendações você pode destacar para os leitores?
Primeiro de tudo tentar ser cauteloso no relacionamento com o cliente quando estiver diante de uma situação delicada, envolvendo outros colegas. Dependendo da forma como esse cliente é abordado, com referência aos serviços de outro profissional, pode colocá-lo em uma situação desconfortável.
Prezar pelo bom relacionamento entre profissionais, obviamente nunca compactuando com o erro, mas sabendo agir de forma prudente, sempre colocando a melhor assistência ao paciente como prioridade. Conhecendo cada uma dessas situações que foram expostas é importante entender as exceções, principalmente se estivermos falando do sigilo médico-veterinário envolvido.
Por isso é fundamental a leitura do código de ética, a compreensão das situações e a fundamentação da própria atuação para agir de maneira segura.
Pergunta enviada por uma médica-veterinária leitora: Ao encaminhar o paciente para outra clínica, tenho o direito de ver o prontuário desse segundo veterinário?
Resposta Dra. Renata Arruda: Importante sabermos que a guarda do prontuário é do estabelecimento e as informações ali presentes são do cliente. O veterinário que encaminhou tem direito a receber informações sobre o paciente, mas o prontuário é um acervo complexo, que contém toda documentação do animal, podendo ser bastante extensa. Para evitar problemas nesse sentido, o ideal seria a entrega do prontuário após a devida solicitação por seu responsável, o cliente, conforme consta nos registros de cadastro do estabelecimento.
Alteração de prescrição e falta de retorno do encaminhamento, sem prejudicar a saúde do paciente e o direito de sigilo do cliente, são algumas das situações que podem gerar mal-entendidos e até processos