
O sucesso requer a compreensão das evidências científicas atuais e bom julgamento clínico. Cada animal requer uma avaliação individualizada, um plano de tratamento, reavaliações frequentes e ajustes desse plano com base na resposta do paciente
Por Luciana Domingues de Oliveira*
O diabetes mellitus (DM) é um distúrbio endócrino que ocorre tanto em cães quanto em gatos e se refere a uma alteração no transporte e metabolismo da glicose. Essa alteração de transporte e/ou metabolismo da glicose pode ser causado por insuficiência da produção de insulina do pâncreas, falta de receptores de insulina nas células ou incapacidade dos receptores de insulina de transluzir o sinal. Isso resulta em hiperglicemia e uma incapacidade de os tecidos receberem a glicose de que precisavam.
Apesar disso, o DM é uma condição tratável, mas que requer um grande comprometimento por parte do veterinário e do tutor. Como existem muitos fatores que afetam o estado diabético, o tratamento do DM é frequentemente complicado. O sucesso requer a compreensão das evidências científicas atuais e bom julgamento clínico. Cada animal requer uma avaliação individualizada, um plano de tratamento, reavaliações frequentes e ajustes desse plano com base na resposta do paciente.
Em cães e gatos o diabetes mellitus é classificado como insulino-independente (DMID) ou tipo 1 ou não-insulino-independente (DMNID) ou tipo 2. A maioria dos cães com diabetes é classificada como DMID. Entretanto, os gatos podem ser diagnosticados com DMID ou DMNID. Além disso, uma porcentagem significativa de gatos pode apresentar remissão do DM em casos diagnosticados precocemente, onde o pâncreas ainda é capaz de secretar a insulina.
O objetivo do manejo dietético em animais com diabetes tipo 1 (DMID) não é eliminar a necessidade de reposição de insulina, mas sim facilitar o controle glicêmico do animal e até mesmo reduzir a dose de insulina. Já nos pacientes com diabetes tipo 2 (DMNID), a terapia dietética também pode não só melhorar controle glicêmico, como pode, em alguns casos, eliminar a necessidade de insulinoterapia exógena.
Independentemente do tipo diabetes, os seguintes fatores que tangem a nutrição devem ser considerados em todos os pacientes:
Devido a todos esses fatores e a grande ocorrência do DM na rotina clínica veterinária, em 2010 a American Animal Hospital Association (AAHA) publicou diretrizes para o manejo do DM em cães e gatos. Em 2018 essas diretrizes foram atualizadas e mantêm grande parte do informações nas diretrizes anteriores que continuam a ser aplicáveis na prática clínica, junto com novas informações que representam opinião atual de especialistas sobre o controle do DM. As diretrizes fornecem recomendações para o uso de cada tipo de insulina atualmente disponível para uso em cães e gatos, medicamentos terapêuticos não insulínicos e controle dietético, sendo esse último ponto o foco desse artigo.
Quando pensamos em pacientes felinos, devemos sempre focar na possibilidade da remissão do DM. O manejo bem-sucedido da doença ocasiona minimização ou extinção dos sinais clínicos, aumento da percepção do tutor sobre a efetividade do tratamento e qualidade de vida do paciente, prevenção ou melhora das complicações do DM (especificamente, cetoacidose diabética e neuropatia periférica) e redução dos riscos de hipoglicemia.
O principal objetivo da terapia dietética é otimizar o peso corporal. A perda de peso em pacientes obesos e a interrupção da perda de peso associada ao DM devem ser focados no tratamento de gatos diabéticos.
A seguinte abordagem nutricional é recomendada gestão do DM felino:
A água é um dos principais nutrientes para todos animais e é especialmente importante em animais com diabetes, já que esses pacientes têm as perdas de água aumentadas devido a diurese osmótica secundária a glicose e corpos cetônicos se houver cetoacidose diabética. A água deve estar fresca e disponível o tempo todo.
Animais diabéticos podem ter perdas aumentadas de aminoácidos através da urina. Pacientes que não são bem controlados também experimentará perda de massa muscular, pois a proteína é catabolizada para atender às necessidades de energia.
Uso de dietas ricas de proteínas (> 40% da energia metabolizável) e pobres em carboidratos devem ser usadas para minimizar a hiperglicemia pós-prandial, maximizar a taxa metabólica, limitar o risco de lipidose hepática durante a perda de peso, melhorar a saciedade, prevenir a perda de massa muscular magra e evitar a desnutrição proteica. Além disso, a proteína normaliza o metabolismo da gordura e fornece uma consistente fonte de energia e a arginina estimula a secreção de insulina.
Gatos diabéticos podem ter taxas de remissão entre 15 e 100% quando administrada uma dieta com a combinação de alta proteína/baixo carboidrato e insulina exógena. As maiores taxas de remissão ocorrem quando a insulina glargina (Lantus) e detemir (Levemir) são usadas em gatos recém diagnosticados como diabéticos (glargina) ou nos 6 meses após o diagnóstico (ambas as formas de insulina).
A glicose é um dos secretagogos mais importantes da insulina em indivíduos saudáveis. Carboidratos que são ingeridos e absorvidos resultam em respostas fisiológicas que são dependentes da taxa em que eles entram no sistema de um animal. Uma dieta com carboidratos de digestão lenta minimiza a resposta glicêmica e é desejável porque proporciona um melhor controle da glicemia. Entretanto, baseado em diversos estudos realizados até o presente momento, não há evidência que os carboidratos sejam os principais moduladores da resposta glicêmica e insulínica dos felinos.
Apesar disso, recentemente tem havido uma tendência entre alguns veterinários e tutores em malignizar os carboidratos como fonte de alimento prejudicial para os gatos. A base para o argumento é que o amido não faz parte da dieta natural dessa espécie na natureza, não sendo saudável para ser consumido por eles. O aumento simultâneo do uso de carboidratos em muitos alimentos comerciais para gatos, associados às taxas crescentes de obesidade e diabetes mellitus é citado, frequentemente, como evidência para essa teoria.
No entanto, evidências científicas contestam essas reivindicações. A secreção insuficiente de insulina e diminuição da sensibilidade à insulina são as principais anormalidades do diabetes felino. Embora seja verdade que experimentalmente a hiperglicemia induzida é prejudicial para as células betapancreáticas felinas, o mesmo ocorre em onívoros. Além disso, a quantidade de carboidratos presentes em dietas comerciais não demonstrou induzir hiperglicemia na espécie. Outros estudos populacionais recentes refutam ainda mais a hipótese de que usar dietas extrusadas a longo prazo são a causa de diabetes em gatos.
A ingestão de carboidratos deve ser limitada porque os carboidratos podem contribuir para a hiperglicemia e toxicidade da glicose. A recomendação é que a dieta deve conter aproximadamente 12% da energia metabolizável vinda dos carboidratos.
Investigações recentes sobre obesidade e patogênese diabetes mellitus em gatos levaram à hipótese de que diabéticos felinos podem ter melhor controle glicêmico ou em alguns casos, até remissão para um estado não-diabético, quando o carboidrato da dieta é restrito. Dessa forma, as evidências científicas atuais não apoiam o argumento de que são os carboidratos presentes em alimentos extrusados para gatos sejam os responsáveis pelos crescentes casos de DM felino.
A quantidade e o tipo de fibra alimentar tem sido objeto de extensa investigação no manejo de pacientes diabéticos. Entretanto, existem poucos estudos avaliando os efeitos da fibra alimentar em gatos diabéticos, de forma que, até o presente momento, não existem evidências de dietas ricas em fibras sejam benéficas para esses pacientes.
Muitos gatos com diabetes têm a dicotomia clássica relacionada à polifagia com perda de peso. No geral, a resposta clínica de animais com diabetes mellitus à manipulação da dieta depende do nível de controle do processo da doença primária e presença ou ausência de doenças secundárias. A perda de peso pode ser secundária ao diabetes mal controlado ou a uma infecção subjacente. Já o ganho de peso pode ser devido à presença de outro problema, como distúrbio da tireoide ou Doença de Cushing. Nos gatos, assim como os humanos, a relação entre obesidade e o DMNID está bem documentada. O desenvolvimento da obesidade é acompanhado por uma diminuição na sensibilidade à insulina e diminuição da eficácia da glicose.
A associação entre obesidade em gatos e o desenvolvimento de diabetes mellitus tem sido bem documentada. Entretanto, estudos epidemiológicos relatam que a obesidade está associada a alimentos ricos em gordura e não a alimentos ricos em carboidratos. De fato, existem alguns estudos que sugerem que dietas ricas em carboidratos e com pouca gordura têm um efeito protetor da obesidade.
Gordura
Animais diabéticos geralmente apresentam anormalidades no metabolismo lipídico, como hipertrigliceridemia, hipercolesterolemia ou ambos. A pancreatite concomitante é comum em muitos diabéticos. A gordura deve ser restringida em pacientes com esses problemas. O grau de restrição de gordura depende do histórico alimentar do paciente e da gordura consumida no momento do diagnóstico de hiperlipidemia e pancreatite.
Gatos com diabetes podem apresentar as seguintes anormalidades vitamínicas e minerais: hipofosfatemia, hipocalemia, hiponatremia, hipocloremia, hipocalcemia, hipomagnesemia e hipovitaminose D. Geralmente, controle adequado do diabetes é suficiente para evitar esses problemas. Somente quando existe a presença de cetoacidose diabética ou de uma outra enfermidade secundária, estes desequilíbrios devem ser abordados.
A administração de múltiplas e pequenas porções tem várias vantagens para gestão dietética de gatos diabéticos:
Review da edição 68 Vet&Share publicado na Edição 101 - Maio de 2023
O sucesso requer a compreensão das evidências científicas atuais e bom julgamento clínico. Cada animal requer uma avaliação individualizada, um plano de tratamento, reavaliações frequentes e ajustes desse plano com base na resposta do paciente